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Sobre estelionatos eleitorais

Folha (publicado em 18/12/2021)

Na campanha de 2014, a presidente Dilma faltou com a verdade. Ganhou a eleição e não terminou o mandato. Na campanha de 1998, Fernando Henrique Cardoso também faltou com a verdade. Ganhou a eleição e governou quatro anos.

O petismo alega que a assimetria é fruto de preconceito e perseguição da mídia e das elites a um governo progressista que permitiu que pobre andasse de avião.

Há diferenças importantes entre os dois estelionatos eleitorais. A diferença é quantitativa. Em política, meia gravidez é diferente de gravidez completa.

Onde está a diferença de intensidade? Primeiro: a manutenção do câmbio no primeiro mandato de FHC, em que pese o artificialismo, ocorria com os mercados funcionando. Havia custos para o governo em manter aquele regime. Os juros eram muitos mais elevados, e, portanto, o crescimento econômico, mais limitado.

Diferentemente, tanto as pedaladas fiscais e o atraso no reajuste dos preços monitorados quanto a perenização da desoneração da folha de salários, entre tantas outras medidas populistas adotadas em 2014, jogavam a conta para o futuro sem nenhum impacto presente relevante.

Segundo, FHC, percebendo a difícil situação que iria enfrentar, proferiu, em 23 de setembro de 1998, a 11 dias do primeiro turno das eleições, um duro discurso sobre a necessidade de um ajuste fiscal em 1999. Nesse momento, é oportuno assistir a reportagem no jornal da noite da Bandeirantes com a repercussão da fala de FHC. Como seria 2015 se Dilma tivesse se arriscado como FHC se arriscou?

É útil revermos um trecho da fala de FHC: “O principal problema é simples: o Estado não tem sido capaz de viver no limite de seus próprios meios. E por isso não cumpre o seu papel no processo de desenvolvimento brasileiro e fragiliza a nossa economia. Os governos federal, estaduais e municipais têm tido dificuldades em restringir seus gastos totais ao que as suas receitas lhes permitem. Por isso, não atendem apropriadamente a seus cidadãos e sobrecarregam a economia privada. Os governos gastam mais do que ganham por vários motivos. Às vezes, são maus governos e administram o seu dinheiro de forma irresponsável. O fim da inflação tornou essas coisas mais fáceis de serem percebidas. E fez o povo entender com mais clareza o que é um bom governo e o que representa a moralidade na administração do dinheiro público. A busca do equilíbrio nas contas públicas é também uma questão de cidadania”.

Terceiro, o ajuste fiscal de FHC se iniciou em 1998, ano da eleição. De acordo com cálculos de meu colega do Ibre Bráulio Borges, houve em 1998 contração fiscal de 0,84 ponto percentual do PIB. Diferentemente, em 2014 houve expansão fiscal de 1,4 ponto do PIB.

Esses três pontos —menor artificialidade da política econômica em 1998 ante 2014, o aviso amplamente noticiado à sociedade e o início da arrumação de casa já em 1998— diferenciam um estelionato do outro. E ajudam a entender o motivo de em um caso não ter ocorrido perda de governabilidade e no outro ter.

A crença em conspirações e inimigos externos nunca foi boa conselheira. Como escreveu FHC no discurso no Itamaraty, “é preciso ter clareza, por outro lado, que existem problemas que são nossos. É sobre estes que eu gostaria de lhes falar hoje”.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2021/12/ha-diferencas-importantes-entre-estelionatos-eleitorais-de-fhc-e-dilma.shtml

As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Samuel Pessôa