Folha (publicado em 23/01/2022)
Em minha última coluna, tratando das balsas dos garimpeiros no rio Madeira e da vigorosa reação da Polícia Federal, enalteci a atitude de impor a lei, como essencial para a preservação da floresta e qualificação do país perante os inúmeros agentes nacionais e internacionais como capacitado a proteger seu riquíssimo patrimônio ambiental e apto a receber os recursos advindos de créditos de carbono, serviços florestais e outras modalidades de investimento que o mundo se dispõe a fazer no esforço de contenção do aquecimento global.
Observei adicionalmente que, embora imprescindível, a aplicação da lei por si só não será capaz de garantir a preservação da Amazônia de forma sustentada. Para isto é imperativo que os recursos advindos do ciclo econômico de baixo carbono cheguem à população local, fazendo com que o truísmo que afirma que a floresta é mais valiosa para a humanidade em pé do que derrubada, seja também válido para os habitantes da Amazônia.
Uma entrevista com o antropólogo americano Jeffrey Hoelle, publicada pela Folha no dia 26 de dezembro sob o título “Criador de boi não é burro nem bandido, diz antropólogo que estudou os caubóis da Amazônia”, fez-me considerar a existência de um requisito adicional aos três mencionados acima (aplicação da lei, captação de recursos e seu direcionamento aos agentes locais) que é a questão cultural.
A valorização social dos homens e mulheres destinatários desses recursos dependerá essencialmente dos mecanismos de distribuição que se elaborem. O dinheiro apenas não será capaz de promover um engajamento autêntico e duradouro da população local.
Os mais velhos se lembrarão de um refrão cantado por Luiz Gonzaga na música “Vozes da Seca”, em que, após agradecer o auxílio dos sulistas, diz: “mas doutor uma esmola a um homem que é são, ou lhe mata de vergonha, ou vicia o cidadão”. A distribuição dos recursos sob a forma assistencialista é válida e necessária em situações emergenciais e transitórias, mas não deve ser a base de uma política permanente de desenvolvimento ecologicamente sustentável.
A leitura do livro de Hoelle “Caubóis da floresta: O crescimento da Pecuária e a Cultura de Gado na Amazônia Brasileira”, publicado nos EUA em 2015 e recentemente traduzido, revela uma pesquisa dedicada, apoiada em trabalho de campo de mais de 12 meses que incluiu convivência intensa com seringueiros, colonos, ‘caubóis’ (vaqueiros), fazendeiros, representantes do Estado e de ONGs no Acre.
As conclusões são baseadas em observações diretas e questionários feitos sempre a 120 pessoas, 20 de cada um dos seis grupos acima. Chama a atenção, a ausência de indígenas entre os grupos analisados.
O fato de a pesquisa ser realizada no Acre confere interesse especial às suas conclusões. O estado foi palco de graves conflitos entre seringueiros e fazendeiros, culminando com o assassinato de Chico Mendes em 1988.
Ali em 1990 criou-se a reserva extrativista (Resex) Chico Mendes, com 970 mil hectares, onde moram 25 mil pessoas que praticam o extrativismo principalmente de borracha e castanha. O estado elegeu o governador Jorge Viana (PT) em 1998, que implantou o Governo da Floresta e formulou o conceito de ‘florestania’, que está para floresta, assim como cidadania está para cidade e cujo pressuposto é a preservação das riquezas naturais da floresta como condição para o desenvolvimento humano, econômico e social.
Na mesma época, Marina Silva, nascida e criada em um seringal, foi ministra do meio ambiente e teve reconhecido êxito no combate ao desmatamento. Entre 1998 e 2018 o Estado teve cinco gestões sucessivas do PT, notoriamente favoráveis à preservação.
Não obstantes todos os fatores acima, verifica-se que ao longo dos últimos 20 anos houve uma significativa conversão de colonos em pecuaristas e que mesmo os seringueiros passaram também a possuir cabeças de gado, que já ocupam parte das bordas internas da Resex.
A conclusão do estudo é que a “cultura do gado” tornou-se dominante no estado. Através de questionários e observações, o autor verifica que os seis grupos mencionados acima (seringueiros, colonos, ‘caubóis’, fazendeiros, representantes do Estado e de ONGs) reconhecem —embora não concordem necessariamente— que a percepção dominante na sociedade é a de que estão presentes as cinco crenças que caracterizariam a hegemonia cultural da pecuária: 1-a criação de gado é a melhor forma de uso da terra, tanto socialmente (status), quanto economicamente (lucro); 2- há maior reconhecimento social das pessoas envolvidas com a pecuária, especialmente se comparadas às que praticam extrativismo ou agricultura; 3- valorização de um estilo de vida baseado no gado, com músicas sertanejas e rodeios, por exemplo; 4- grupos ligados à pecuária consomem mais carne, o que é visto como desejável 5- a relação com a natureza através da pecuária é mais valorizada, na medida em que mostra um maior comando da natureza pelo homem.
Os esforços do governo em criar manifestações culturais em torno do conceito de “florestania”, de modo a valorizar os aspectos da vida integrada à proteção da floresta, não teriam sido capazes de fazer frente à atração exercida pela “cultura de gado”.
Opinião semelhante pode ser encontrada na quarta reportagem da excelente série “Arrabalde” de João Moreira Salles, publicada na revista Piauí: “Não há, hoje, uma cultura de floresta que se sobreponha à cultura do boi, corolário inescapável do processo de colonização. Triunfou a versão de quem nunca prestou atenção à floresta. Perderam os indígenas, os coletores, os ribeirinhos, aqueles que desejam a mata porque não vivem sem ela.”
Na página digital da entrevista de Hoelle, há uma série de comentários críticos, chamando-o de trumpista e vendido, entre outras coisas. Aos críticos, sugiro que não atirem no mensageiro e procurem ler o livro, ou informar-se mais. Deixar de reconhecer as dificuldades nunca foi boa receita para sua superação.
O livro nos ajuda a compreender que mesmo com vontade política como no governo Jorge Viana, e iniciativas regulatórias corretas, como foi a criação da Resex, outros fatores relevantes devem ser considerados para que se alcancem os avanços urgentes e necessários na questão ambiental.
Além da ausência dos indígenas, o estudo —possivelmente por ser de 2015— tem a limitação de não considerar a hipótese de haver receitas de créditos de carbono e serviços florestais, que beneficiariam as atividades compatíveis com a preservação da floresta. Estes recursos por si só, podem permitir a essas iniciativas fazer frente aos atrativos econômicos da pecuária.
Restará ainda a tarefa fundamental de fazer com que as atividades ligadas à preservação da floresta sejam valorizadas social e culturalmente.
Minha modesta contribuição aos grupos que têm refletido sobre este tema complexo, seriam três sugestões: 1-aplicação dos recursos da economia de baixo carbono para subsidiar diretamente o preço dos produtos da floresta, de forma que cheguem aos trabalhadores como fruto direto do seu esforço e empreendedorismo; 2-formação de profissionais locais e valorização de carreiras ligadas à preservação e ecoturismo, como guarda-parques e guias; 3-envolvimento de publicitários e artistas em um esforço coordenado de transformação cultural, que confira aos agentes da preservação da floresta reconhecimento social ainda maior que aquele que rodeios e música sertaneja atribuem aos caubóis e pecuaristas. Afinal, posso pensar em poucas atividades tão nobres e necessárias como a de “guardiães da floresta”.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2022/01/cultura-de-gado-e-florestania.shtml
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