Folha (20/02/2022)
Das experiências mais desconcertantes, chegando a ser desconfortável, é nos depararmos com um resultado que contraria a visão de mundo que temos. Mas é das experiências mais ricas que podemos ter. Ensina-nos a tolerância e a duvidar sempre de nossas certezas.
Sabe-se que a economia americana é muito mais desigual do que a europeia. O resultado ocorre quer comparemos os EUA com cada país da Europa ou quando consideramos a Europa como um único país.
Minha visão de mundo sempre foi que a maior desigualdade americana se devia ao menor Estado de bem-estar social que há por lá. Bem de acordo com uma visão social-democrata, nos Estados Unidos a tributação é menor, assim como a oferta de seguros públicos.
A Europa, por sua vez, escolheu maiores cargas tributárias para que o Estado tenha mais recursos para oferecer seguros públicos. Como resultado, parte da maior desigualdade americana segue da menor redistribuição pelo Estado. Essa também é a visão aceita pela literatura.
Será publicado no próximo fascículo da revista de economia aplicada da American Economic Association o artigo “Por que a Europa é mais igualitária do que os Estados Unidos?”.
Os autores, Thomas Blanchet, Lucas Chancel e Amory Gethin, são do Laboratório da Desigualdade Mundial da Escola de Economia de Paris, instituição que conta com a liderança do popular e respeitado pesquisador francês Thomas Piketty.
A partir de uma cuidadosa conciliação de diversas pesquisas para inúmeros países, o trabalho inverteu a visão estabelecida. A diferença de desigualdade entre os EUA e a Europa é maior quando se consideram as rendas das pessoas antes do Estado —isto é, antes do pagamento dos impostos e dos recebimentos dos serviços públicos e transferências— do que após o Estado. O Estado americano redistribui mais do que o Estado europeu!
De alguma maneira, que o trabalho não elabora —o objetivo do trabalho é unicamente estabelecer um fato estilizado (já é uma enorme contribuição)—, a Europa pré-distribui renda. Como? Não sei. Será necessário muito trabalho para sabermos. Há duas possibilidades, pelo menos.
A primeira, mais ortodoxa, sugere que o sistema educacional europeu é mais eficiente em igualar as oportunidades. O Estado europeu priorizaria igualdade de oportunidades, e o Estado americano, igualdade de resultados.
A segunda, mais heterodoxa e complementar à anterior, sugere que a regulação do mercado de trabalho e a intervenção do Estado no processo produtivo na Europa garantem bons empregos para todos (ou quase todos). Aguardemos os próximos capítulos.
A diferença no resultado deveu-se ao emprego de diversas pesquisas. Tradicionalmente a literatura de desigualdade trabalha com as pesquisas domiciliares, como a nossa Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), conduzida mensalmente pelo IBGE. Essas pesquisas geraram a visão tradicional de que o Estado europeu redistribui mais do que o americano.
O trabalho recente adicionou dados do órgão das receitas federais, que conseguem enxergar melhor os ricos, e os dados de contas nacionais, que permitem enxergar os impostos indiretos e o lucro empresarial após o pagamento de impostos.
Antes da intervenção do Estado, os 10% mais ricos nos EUA recebem 45,7% da renda e 34,3% na Europa, uma diferença de 11,4 pontos percentuais. Após o pagamento de impostos e as transferências, os números são, respectivamente, 37,1% e 30,4%, uma diferença de 6,7 pontos percentuais (queda de 41% da diferença entre as regiões).
O Estado americano redistribui mais do que o europeu nas duas pontas: a tributação é mais progressiva, pois menos dependente de impostos indiretos; e o gasto público é mais focado nos pobres.
Vivendo e aprendendo.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2022/02/por-que-os-eua-sao-mais-desiguais-do-que-a-europa.shtml
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