Estadão (publicado em 23/02/2022)
Trinta anos atrás, o então ministro Celso Lafer, coordenando uma reunião de 100 países sobre meio ambiente, a Rio-92, já debatia os conflitos entre medidas protecionistas e interesses do mercado internacional. Hoje, à luz das atitudes negacionistas do governo Bolsonaro, ele olha o mesmo cenário e constata: a percepção do País “é muito negativa”, e o tema ambiental “já não é mais uma preocupação só de governos, mas de consumidores, que impõem suas preferências”.
Advogado, jurista, professor, membro da Academia Brasileira de Letras e ex-ministro das Relações Exteriores nos governos Collor e FHC, Lafer compara, nesta conversa com Cenários, o desafio ambiental daquela época com o de hoje. E destaca novas realidades. Primeiro, a comprovação científica de que há “um deeping point (ponto profundo) a partir do qual não é mais possível a regeneração das florestas”. E segundo, que ganha força no debate mundial, a subdiplomacia ambiental, onde Estados, municípios e organizações sociais atuam e têm voz e peso nas decisões. A seguir, principais trechos dessa conversa.
Como diplomata, de que forma avalia a imagem do Brasil lá fora?
A percepção do País no exterior, hoje, é negativa, o capital diplomático está sendo muito dilapidado. Para dar um exemplo óbvio, a questão do meio ambiente, que veio para ficar. Tema no qual o Brasil teve, desde a Rio-92 – da qual eu participei ativamente –, uma inequívoca consolidação no plano internacional. Mas a posição do governo Bolsonaro tem sido muito negacionista nessa área. Pelas palavras que ele usa, pelo desmanche das instituições de monitoramento e controle. Os números não nos são favoráveis.
E isso abre caminho para os concorrentes recorrerem a sanções.
Sem dúvida. Atualmente, se você olha as certificações exigidas nas exportações dos produtos, se nas cadeias produtivas você está atendendo ao desenvolvimento sustentável, verá que não é preocupação só de governos, mas de empresas, de consumidores. E, se você quer acesso a créditos, atender a esses requisitos é fundamental.
O que pode ser feito?
Por ocasião da Rio-92, o Brasil já era visto como negacionista. Havia uma frase famosa dizendo: “A poluição é nossa porque atende aos objetivos do desenvolvimento”. Mas naquele encontro a noção do desenvolvimento sustentável se consagrou. O que ela diz? Que nas decisões públicas e privadas você tem de internalizar os custos do meio ambiente. Daí vêm a análise de impacto ambiental, o princípio da precaução… Quando você tem, na Amazônia, um significativo volume de desmatamento, e quando a ciência já comprovou que há um ‘deeping point’ a partir do qual não é mais possível a regeneração da floresta, há uma avaliação muito negativa.
Fica patente o descaso, né?
É a palavra certa, descaso. Na conferência de Glasgow de novembro passado, a COP-26, uma das coisas mais significativas foi a consciência de que meio ambiente não é só um tema de governo, mas da sociedade civil. Tem as organizações não governamentais, como a SOS Mata Atlântica, da qual você participa. Em Glasgow, tivemos uma participação relevante do setor privado. E é um movimento amplo, a administração Joe Biden nos EUA lhe dá grande importância, os chineses também.
Como o sr. avalia o atual desempenho do Itamaraty nessa questão?
Acho que a mudança do ministro foi muito positiva. Ele tem procurado fazer uma redução de danos. Em Glasgow, o Itamaraty criou um diálogo mais aberto. E o meio ambiente se comportou melhor do que se imaginava, embora um presidente cuja vocação é negar a ciência não possa transmitir ao mundo, é claro, uma visão construtiva nessa matéria. E tem outra área que em Glasgow apareceu, a diplomacia subnacional.
O que vem a ser isso?
É a diplomacia feita por Estados e municípios. Veja o município de São Paulo, que tem uma Secretaria de Relações Internacionais fazendo pactos importantes. Da mesma forma, governadores do Norte se movem, na defesa da floresta Amazônica – enfim, temos aí uma federação atuando. Dou-lhe outro exemplo. Foi a atuação de um governo estadual, São Paulo, e seu bom relacionamento com a China, que viabilizou a oferta de vacinas contra a covid pelo Instituto Butantan.
Por falar em China, acha que a hegemonia chinesa está voltando?
O que temos, a meu ver, é uma conhecida imagem do historiador francês Fernand Braudel: a economia saiu do Mediterrâneo, foi para o Atlântico, do Atlântico para a Ásia. E a China passou a ter um papel que não tinha 30 anos atrás. Hoje, é a grande concorrente dos EUA em conhecimento e inovação.
O Brasil está de novo no Conselho de Segurança da ONU. O que espera disso?
Eu me pergunto: o governo Bolsonaro sabe o que quer fazer lá? Tem uma visão estratégica de seu papel? Claro que não vai resolver tensões internacionais, mas ele poderia desempenhar um papel construtivo. Não me sinto otimista a respeito. Como você sabe, quem define a política externa é o presidente, por ação, ou por omissão.
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