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Sobram recursos para saúde e educação

Horácio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski

Valor (publicado em 23/02/2022)

O Brasil deixa de arrecadar 4% do Produto Interno Bruto (PIB) todos os anos por conta dos incentivos fiscais concedidos para diferentes setores empresariais e pessoas físicas de maior renda. Chamados de gastos tributários na contabilidade pública, o valor estimado para 2022 alcança R$ 371 bilhões e supera o que está previsto no orçamento federal para as áreas de saúde e educação somadas (R$ 288 bilhões). Apesar do respaldo legal, a maior parte dos benefícios, isenções e renúncias fiscais carece de um embasamento técnico que justifique sua concessão.

Sem controle e protegida pelo sigilo, a conta dos gastos tributários dobrou de tamanho em 20 anos, quando representava 2% do PIB. A responsabilidade fiscal necessária para que o país possa investir nas áreas realmente imperativas para seu desenvolvimento inclusivo e sustentável exige do Executivo, do Legislativo e da sociedade, a revisão dessa pesada e insuportável conta. Toda política pública precisa ser transparente, baseada em evidências, direcionada a reduzir desigualdades e promover a competitividade. Nada disso acontece com os gastos tributários, que transitam à margem do orçamento e distorcem o sistema tributário. O país deixará de recolher R$ 45 bilhões na Zona Franca de Manaus e outros R$ 81,8 bilhões pelo Simples Nacional em 2022 sem saber precisamente quem usufrui desse benefício e sem conhecer seu eventual retorno para o conjunto da sociedade.

Além da falta de transparência, a sociedade também não tem instrumentos para medir a eficácia dos programas apoiados por privilégios fiscais. O Simples tem respondido, sozinho, por quase um quarto dos gastos tributários. Concordamos que o microempresário precisa ser estimulado. Mas será esse o melhor sistema para atingir esse objetivo? E quem deve ser considerado pequeno? Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), mostrou que o limite de receita anual para enquadramento no Simples (R$ 3,6 milhões ou US$ 1 milhão em 2014) já era muito mais elevado que o vigente em outros países, comumente entre US$ 50 mil e US$ 150 mil por ano. Desde então, o teto no Brasil subiu para R$ 4,8 milhões

Falta transparência, a sociedade não tem como medir a eficácia dos programas apoiados por privilégios fiscais

Além de distorcer o sistema tributário, isenções afetam a condução de políticas públicas. O abatimento de gastos de saúde no Imposto de Renda de pessoas físicas e jurídicas representa uma renúncia tributária expressiva. Ela está estimada em R$ 31 bilhões para 2022, valor que se assemelha aos R$ 34,5 bilhões destinados à Atenção Básica no orçamento do Ministério da Saúde, programa que sustenta 101 mil equipes de saúde da família espalhadas pelo Brasil, base do Sistema Único de Saúde (SUS) e cuja força foi decisiva no combate à covid-19. Enquanto o orçamento do Ministério da Saúde ficou estável entre 2015 e 2018, o total das isenções relacionadas à saúde (que beneficiam mais os extratos mais ricos da população) subiu 46% acima da inflação no período, segundo estudo do Ipea.

Renúncias fiscais, em si, não são um erro de política pública. O problema é o tamanho que elas ocupam na frágil situação fiscal brasileira, sua falta de transparência, a quase impossibilidade de apurar sua real eficácia, sua usurpação por grupos de interesse e as distorções que elas provocam no sistema tributário e na concorrência. Desde 2019, o Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (Cmap), do Ministério da Economia, analisou 46 programas, refletindo políticas que somam R$ 1,1 trilhão, em gastos diretos e subsídios. As avaliações e recomendações estão disponíveis, sugerindo ajustes nas políticas. Embora algumas análises careçam de maior aprofundamento, esse é um avanço sobre o qual o Congresso Nacional deveria se debruçar ao invés de simplesmente agir para defender interesses corporativos como fez na apreciação da Emenda Constitucional 109.

Na versão original, a emenda determinava a redução para 2% do PIB do total das renúncias fiscais no prazo de oito anos. Os parlamentares excluíram mais de 50% do total das isenções dessa regra, gesto que inviabilizou o espírito da lei. O que se defende aqui não é uma demonização das renúncias, mas sua exposição à mesma publicidade exigida dos gastos diretos somada a uma real avaliação de sua eficácia. Esse debate pressupõe discutir qual economia queremos desenvolver. Não seria melhor usar os benefícios concedidos à Zona Franca de Manaus para incentivar um modelo que preserve a floresta e seja baseado no uso de insumos naturais?

De forma silenciosa, uma pequena vitória na agenda de enfrentamento da revisão dos gastos tributários veio na Lei Complementar 187/2021, que introduziu uma nova exceção ao artigo 198 do Código Tributário Nacional ao listar “incentivo, renúncia, benefício ou imunidade de natureza tributária cujo beneficiário seja pessoa jurídica” como uma exceção ao direito ao sigilo. O conhecimento dos estabelecimentos beneficiados por isenções fiscais permitirá à sociedade um controle dos ganhos e perdas com essas concessões. Depois, de posse desses dados, espera-se que o Legislativo e o Executivo exerçam, com apoio da sociedade, o papel de reavaliar os benefícios concedidos, cortar os que não funcionam e adotar como fio condutor as políticas públicas que dirijam o Brasil para uma sociedade mais justa, inclusiva, que amplie o acesso à saúde e educação de qualidade e seja ambientalmente sustentável. Já passou da hora de trazer parte expressiva desses quase R$ 400 bilhões para dentro do orçamento. Já passou da hora da sociedade avaliar o melhor uso de seus recursos.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/sobram-recursos-para-saude-e-educacao.ghtml

As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

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Pedro Passos