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A verdadeira interdição do debate

Folha (publicado 27/02/2022)

Diversos analistas acreditam que o debate fiscal está interditado. Que a ideologia dos economistas de mercado, ou da “Faria Lima”, ou ainda os liberais, se impõe e interdita a discussão.

Não há essa interdição. É útil antes olhar um pouco os números. Consultei o Governance Finance Statistics do FMI. A seguir, os valores da carga tributária do setor público consolidado, sempre em proporção do PIB, em 2020: Brasil, 39%; África do Sul, 39%; Reino Unido; 37%; Coreia do Sul, 34%; Turquia, 31%; EUA, 31%; Colômbia, 29%; Costa Rica, 25%; México, 22%; Irlanda, 22%; Chile, 22%; Tailândia, 21%; Peru, 20%; Paraguai, 18%; Filipinas, 16%; e Indonésia, 13%.

Ou seja, para encontrar cargas tributárias mais elevadas do que a nossa, temos que olhar as economias da Europa continental. Por exemplo, temos: França, 52%; Croácia, 48%; Itália, 47%; Alemanha, 46%; República Tcheca, 41%, entre outros. É possível, portanto, aumentar a carga tributária. Não há nenhuma ideologia interditando esse debate. Quem interdita esse debate é a nossa economia política.

O problema é que, desde 2004 —quando o Congresso Nacional rejeitou a MP 232, que elevava a tributação sobre os prestadores de serviços—, a sociedade tem rejeitado entregar mais recursos ao setor público.

O último capítulo dessa novela foi a forma como o Congresso desfigurou o PL (projeto de lei) enviado por Paulo Guedes de reforma tributária. O PL tinha boas medidas que elevavam a progressividade dos impostos de renda e aumentavam a arrecadação. O monstrengo que foi aprovado na Câmara gera redução de carga. Nenhum economista apoiou esse monstrengo. Ele é fruto da nossa economia política.

Segundo base de dados do FMI, de uma amostra de 46 economias emergentes e de renda baixa, somente cinco países gastaram mais do que nós com medidas ligadas à Covid: Indonésia, Peru, Sérvia, Chile e Tailândia. Os demais 40 países gastaram menos do que o Brasil. Onde está a interdição?

Por outro lado, me parece haver um debate interditado. Um exemplo. Há uma demanda para que o setor público tenha uma participação mais ativa no estímulo às atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D). A popular economista italiana e professora em Londres Mariana Mazzucato tem defendido essa posição. Não há a menor dúvida de sua importância. E não há a menor dúvida de que esse é um campo precípuo de ação do setor público. Mas ninguém se pergunta o que temos feito com o que já temos.

Temos uma extensa rede de universidades públicas; bancos públicos, como BNDES e BNB; agências de fomento financeiro, como a Finep; agências de desenvolvimento direto, como Embrapa e Emprapii; inúmeras agências de estímulo, como, por exemplo, as fundações estaduais de apoio à pesquisa; etc.

Adicionalmente, nos anos 2000 aprovamos a Lei do Bem e a Lei da Inovação. No período do petismo, não faltou recurso para essas e outras instituições. Qual foi o impacto de toda essa estrutura na produção de patentes?

O debate interditado não é o do tamanho do Estado, mas sim sobre a efetividade desse Estado em atender os seus objetivos públicos.

O teto do gasto foi a forma técnica encontrada para encaminhar as inconsistências de nossa economia política.

Se a esquerda deseja aumentar o gasto público, precisa convencer a sociedade a entregar mais impostos para o Estado. E, por favor, quando o Congresso votar medida que eleve o limite para o enquadramento de uma empresa no regime do Simples, votar contra.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2022/02/a-verdadeira-interdicao-do-debate.shtml

As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Samuel Pessôa