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Descoberta do Endurance traz a esperança de que Zelenski tire Ucrânia do abismo

Folha (publicado em 19/03/2022)

“I am just going outside and may be some time” (Vou lá fora e posso demorar um pouco).

Com essas palavras, o capitão Lawrence Oates despediu-se do comandante Scott e outros dois companheiros com quem dividia a tenda, sob a intensa nevasca no fim do verão antártico em 1912.

Dois meses antes, o grupo, que então contava cinco integrantes, alcançara o ambicioso objetivo de atingir o polo Sul geográfico; aquele ponto único na Terra, em que, para qualquer lado que uma pessoa se vire, estará sempre voltada para o norte. Mas foi um triunfo amargo, pois ao lá chegarem encontraram a bandeira norueguesa fincada 33 dias antes pelo explorador Amundsen. Eles haviam sido batidos na disputa pela conquista de um dos últimos pontos desconhecidos do planeta.

extensão do desafio fica mais clara se sabemos que o polo Sul geográfico se situa a mais de 2.800 metros de altitude e dista cerca de 1.300 quilômetros da costa. Para percorrer essa distância, ascender ao polo e retornar, enfrentando os rigores do clima antártico com a tecnologia disponível à época, eram necessários mais de três meses e uma complexa logística que envolvia o estabelecimento de depósitos de provisões para serem consumidas no caminho de volta, uma vez que era impossível ao grupo carregar todos os mantimentos necessários.

Abatidos pela derrota e impactados pela morte de um companheiro no início do percurso de volta, os quatro membros restantes enfrentavam tempestades que atrasavam sua marcha. A incerteza quanto ao êxito do retorno era agravada pela lentidão de Oates, cujos pés estavam tomados por gangrena e úlceras do frio.

É nesse contexto que devemos entender a frase no início deste texto. Oates, como tacitamente esperado por todos, jamais voltou à barraca e sua frase entrou para a história como um exemplo extremo de cavalheirismo e autossacrifício. Porém, o seu propósito não foi atingido; seus três companheiros morreriam de inanição poucos dias depois, a 17 quilômetros do próximo depósito de mantimentos.

Três anos antes, em janeiro de 1909, outro explorador inglês, Ernest Shackleton, chegara com três companheiros a apenas 150 quilômetros do polo geográfico, já no alto do planalto. Temendo não dispor dos recursos necessários para atingir o polo e completar a viagem de volta, decidiu retroceder, contentando-se com o fato de ter batido o recorde de proximidade do polo até aquela data.

Em uma carta para sua mulher, Emily, ele incluiu uma frase que, embora careça da elegância e dramaticidade daquela que abre este texto, tem também sua dose de sabedoria:”

I thought, dear, that you would rather have a live ass than a dead lion” (Eu pensei, querida, que você preferiria um asno vivo a um leão morto).

Shackleton era persistente. Se o polo Sul já havia sido conquistado, restava o desafio de cruzá-lo de um lado ao outro. Essa foi a expedição que ele concebeu e liderou três anos após a conquista de Amundsen, conhecida como Expedição Endurance, nome do navio que a transportou.

Mas a travessia do polo nem sequer foi iniciada. O Endurance ficou preso no gelo antes de chegar ao ponto de partida do percurso a pé. Shackleton e os 27 homens que o acompanhavam tiveram que passar o inverno antártico de 1915 imobilizados, até que o Endurance foi esmagado pela pressão do gelo e afundou.

Durante meses o grupo acampou até conseguir colocar os botes salva-vidas na água e rumar para uma ilha deserta, Elephant Island, a partir da qual Shackleton, com cinco companheiros em um dos botes, empreendeu uma viagem de 1.300 quilômetros pelo mar de Drake, um dos mais perigosos dos cinco oceanos, em busca de socorro.

Chegando ao objetivo, com inúmeros percalços, Shackleton providenciou o resgate dos companheiros que haviam ficado em Elephant Island, mais de um ano após o naufrágio.

Todos os homens retornaram em segurança à Grã-Bretanha.

O que transformou uma expedição fracassada do ponto de vista de seu objetivo declarado em um episódio épico de sobrevivência foi a capacidade de liderança e a preocupação com a segurança de seus homens, que Schakleton já demonstrara em 1909, ao abandonar o objetivo de atingir o polo. Na expedição Endurance ele levaria essa sua qualidade ao paroxismo, tendo liderado seu grupo em condições extremamente adversas, enfrentado e superado insubordinações, tornando-se um exemplo de equilíbrio, coragem e dedicação.

Nestes dias sombrios em que o passado parece ter voltado para nos assombrar, quando assistimos pasmos a uma invasão militar em território europeu, com bombardeios sobre populações civis e a ameaça mal velada de um conflito atômico, a extraordinária descoberta do Endurance preservado pelo frio das águas abissais da Antártica nos traz à memória esse marco da capacidade humana de conquistar através da empatia, da determinação e do destemor. Traz também a esperança de que Zelenski tenha o mesmo êxito de Shackleton e que em breve seja possível içar a região do abismo a que foi projetada.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2022/03/descoberta-do-navio-endurance-traz-a-esperanca-de-que-zelenski-tire-ucrania-do-abismo.shtml

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Sobre o autor

Candido Bracher