Folha (publicado em 2/04/2022)
Diversos argumentos justificam as políticas de ação afirmativa. A diversidade no ambiente universitário é um valor em si. Ajuda na construção de um sentido de pertencimento de todos à sociedade e colabora para desenvolver a empatia entre os diferentes.
Associados à raça há estereótipos que foram construídos ao longo de séculos. O racismo estrutural é um equilíbrio de expectativas autorrealizáveis muito persistente.
Suponha que a sociedade seja constituída por dois tipos de indivíduos, os verdes e os azuis. Se todos, inclusive os verdes, acharem que os verdes são piores sob algum critério, por exemplo, que sejam menos produtivos no trabalho, o comportamento de todos, os azuis e verdes, será tal que validará a hipótese inicial. Todos se comportarão como se de fato os verdes fossem piores e, portanto, os verdes serão piores.
Por exemplo, suponha que se acredite que verdes são mais propensos a assaltar táxis. Os possíveis usuários verdes de táxis não-assaltantes ficarão constrangidos com a situação e tenderão, na média, a empregar outros meios de transporte. No frigir dos ovos, os verdes usuários de táxi serão mais propensos a assaltar.
Argumentos como este estão elaborados de forma simples e elegante em “The Anatomy of Racial Inequality” (A anatomia da desigualdade racial), de Glenn Loury, infelizmente não traduzido.
As políticas de ação afirmativa estimulam a criação de exemplos positivos, isto é, que contribuam na construção de profissionais que sirvam de modelos e ajudem a quebrar o equilíbrio de expectativas autorrealizáveis.
Há, no entanto, argumentos meritocráticos. A disputa como ocorria antes da lei de cotas por vagas nas universidades não garantia a seleção do melhor candidato. A vaga era definida exclusivamente em função da nota. A nota não é um bom critério para prever o desempenho acadêmico e profissional do aluno se as condições de preparação para o vestibular entre as pessoas tenham sido diferentes.
Um aluno mediano que teve inúmeras oportunidades de se preparar pode ter melhor nota do que um aluno melhor, mas que estudou em escolas piores, enfrentando inúmeras dificuldades. Neste caso a cota racial e social funciona da mesma forma que o sistema de rating para regatas de veleiros oceânicos de diferentes desenhos.
O vencedor não será necessariamente o primeiro a cruzar a linha de chegada, isto é, o fita azul. O fita azul pode ter chegado na frente, por exemplo, em função de maior área vélica. Esse problema não ocorre nas regatas olímpicas pois os veleiros são idênticos.
Há um segundo possível motivo, derivado do anterior, de melhoria da eficiência em função das cotas: a disputa mais igualitária pode estimular o esforço de todos, os favorecidos e os desfavorecidos, pelas cotas. Em uma sociedade muito estratificada não há estímulos. A vaga está quase dada pelas condições de vida.
Para o Brasil, há forte evidência de que as cotas aumentaram a participação dos negros e pardos nas universidades federais. E há evidências de que outras medidas de ação afirmativa que sejam racialmente neutras não terão a mesma eficiência (veja estudo de Renato Schwambach Vieira e Mary Arends-Kuenning de 2019).
Por esses motivos penso que o Congresso Nacional deve renovar a legislação de cotas raciais.
Versão ligeiramente diferente desse texto apareceu na Revista Conjuntura Econômica de dezembro de 2021. Volto ao tema para o público da Folha pela importância de ele ser tratado no debate público do ponto de vista da teoria econômica padrão.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2022/04/congresso-deve-renovar-a-lei-de-cotas.shtml
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