O Brasil enfrenta há anos desafios no campo da segurança pública. Aumento de diferentes crimes, sensação de medo e insegurança, baixa articulação e planejamento das políticas no setor, vergonhosa média de 50 mil homicídios nos últimos anos e o frequente excesso de uso da força por parte das polícias são alguns exemplos de como os problemas se manifestam.
Nos anos mais recentes, contudo, ganhou força um outro desafio: o aumento dos riscos democráticos gerados por ações e políticas implementadas sob a gestão do presidente Jair Bolsonaro no campo da segurança pública. Especialmente num ano eleitoral, é necessário analisar e compreender melhor tais riscos.
O primeiro ponto a se destacar é o vertiginoso aumento do armamento civil no país. Desde janeiro de 2019 até abril de 2022, foram editados quase 40 atos normativos, entre decretos, portarias e resoluções, para facilitar o acesso às armas de fogo no país. Em 2021 o Brasil atingiu o recorde em número de cidadãos civis com acesso às armas. Até novembro daquele ano, o Exército havia concedido 1.162 novos registros por dia a Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs), sendo mais que o dobro dos 567 contabilizados diariamente no ano anterior. Sem contar as armas registradas em nome dos cidadãos que compram para defesa, cerca de 450 mil novas armas em mãos de civis só em 2021.
Em conjunto com a quantidade de novas armas nas mãos de civis, está em curso também um processo de legitimação do uso dessas armas por parte do presidente. A reunião ministerial de abril 2020, em que Jair Bolsonaro conclamou a seus ministros: “Eu quero escancarar a questão do armamento”, “se um bosta de um prefeito fizer um decreto obrigando o cidadão a ficar em casa, ele tem que poder se defender”. Uma espécie de autorização para que cidadãos façam uso político de suas armas, sob o bordão “Povo armado jamais será escravizado”.
Ainda em relação à questão das armas, tem-se observado que a militância pró-armas tem flertado com discursos autoritários e antidemocráticos. São grupos que defendem amplamente o direito individual à legítima defesa, mas nos quais é possível encontrar posicionamentos públicos que vociferam posições antidemocráticas. Por exemplo, no encontro promovido por grupos a favor das armas em junho de 21 foi comum ouvir discursos inflamados contra o STF e de deslegitimação das eleições no caso de votação com urna eletrônica. Em junho de 2020 o grupo denominado 300 do Brasil, que atacou o STF com fogos de artifício e pregou o fechamento do tribunal, reconheceu que tinha entre seus membros pessoas armadas, com registro de CAC[1].
As Forças Armadas Brasileiras também se encontram sob ingerência política excessiva por parte do governo federal. Voltando ao tema das armas de fogo, em plena pandemia o governo Bolsonaro revogou importantes portarias do Exército Brasileiro que fortaleciam o rastreamento de armas e a marcação de munições, mecanismos importantes para o esclarecimento de crimes, como, por exemplo, no esclarecimento parcial do caso do assassinato da vereadora Marielle Franco – o lote de origem da munição foi descoberto graças a esse sistema. A revogação das portarias a pedido do presidente Bolsonaro em um tweet mostra a interferência direta na autonomia do Exército em sua atuação técnica sobre produtos controlados, como as armas e munições. Processo em curso no Tribunal de Contas da União já apontou que os motivos para a revogação foram políticos e não técnicos.
Outra dimensão dos riscos democráticos promovidos por ações relacionadas à segurança pública, é a ingerência política em diferentes instituições de uso da força. Depois da saída do ex-Ministro Sergio Moro, acusando o presidente de tentativa de influenciar diretamente no trabalho da Polícia Federal, essa ameaça se concretizou. Diferentes análises[2] apontam para a cooptação política da PF, especialmente no esforço de acessar informações sobre investigações sigilosas. Alguma tentativa de influência sobre a PF é natural e até esperada por parte do Executivo federal, mas a forma como tem ocorrido na gestão Bolsonaro é inédita e profunda. Houve troca de toda a cúpula, assim como representantes regionais estratégicos, como, por exemplo, a superintendência do RJ. Em março deste ano, foi nomeado o quinto diretor-geral da PF.
Por fim, o Brasil tem se questionado sobre a influência do bolsonarismo nas polícias brasileiras. Infelizmente, não há pesquisas mais aprofundadas sobre qual o nível e o real significado dessa influência nas instituições policiais, mas há uma importante discussão entre pesquisadores e policiais brasileiros sobre o risco relativo de que as polícias brasileiras, sobretudo as militares, sejam instrumentalizadas pelo presidente. Os termos do debate não apontavam riscos de uma sublevação das polícias militares, mas de um “deixar de atender os comandos dos governadores”, chefes das polícias estaduais, por meio de greve branca, de aumento de violência policial e outras formas de boicote. Um pequeno indício destes riscos ficou visível na relutância de governadores a impor medidas mais rígidas de isolamento social, que eram recomendadas por especialistas da saúde. Houve muitos sinais informais de lideranças policiais apontando que não iriam fazer cumprir este tipo de medida, numa clara afronta ao seu dever institucional. Voltando a contaminação das forças e as eleições, sondagem recente feita com policiais militares mostra como os ataques à confiança das urnas eletrônicas penetrou com mais força nas polícias (57% dos PMs consultados afirmou não confiar na urna eletrônica). Faltando apenas 5 meses para as eleições, estes sinais devem reforçar o alerta entre a sociedade e as instituições democráticas.
Estes aspectos mostram como as instituições de uso da força encontram-se, por um lado, ameaçadas, já que há um verdadeiro exército civil armado em formação no país, por outro, fragilizadas, já que a ingerência política tem retirado gradualmente a independência e autonomia de organizações como a Polícia Federal e o Exército, o que representa um risco à democracia brasileira.
Apesar desses inúmeros retrocessos há experiências concretas no campo da segurança pública, com excelentes resultados e baseadas em evidências. A atual política de uso da força adotada pela Polícia Militar do Estado de São Paulo é um ótimo exemplo[3]. A decisão política de implementar um conjunto de ações como a implantação de comissões para estudar os casos de mortes em serviço e rever protocolos, adoção de armamento menos letal, apuração e resposta rápida para os casos, especialmente dos que há excesso e a implantação das câmeras corporais te, gerado resultados importantes. Tanto a letalidade quando a vitimização policial vem caindo de forma sustentada, desde o início dessas medidas. Outro exemplo é a implantação de um Modelo Integrado de Controle de Armas pelo Governo do Espírito Santo em parceria com o Instituto Sou da Paz. Num projeto de dois anos o Estado se tornou o primeiro e ter o modelo composto por quatro eixos: a produção de análise de informações estratégicas sobre armas ilegais apreendidas pela polícia possibilitando seu rastreamento; o aprimoramento da inteligência policial para realizar atividades e operações mais planejadas e efetivas; cooperação institucional entre diferentes polícias e órgãos e a custódia mais segura das armas apreendidas.
Por fim, é preciso reforçar a compreensão de que segurança pública e todas as instituições de uso de força servem para preservar vidas e garantir direitos de todas as pessoas é fundamental para superar riscos antidemocráticos. Há também caminhos concretos a seguir, como direcionar os esforços federais para estruturar as forças de segurança estaduais para a prevenção e enfrentamento dos crimes graves em cada estado, priorizar a implantação de políticas de uso da força com procedimentos e princípios claros e o enfrentamento ao racismo nas políticas de segurança pública, integrar políticas sociais às de segurança pública para lidar com a violência, priorizar a inteligência e o planejamento na atuação policial, dotar de autonomia responsável a Polícia Federal, investigar e esclarecer todos os homicídios e fortalecer uma política de controle de armas responsável. Boa parte dessas possibilidades já foram experimentadas aos soluços pelo país. Torná-la perenes e coordenadas seria o caminho mais adequado para que políticas de segurança pública contribuíssem para fortalecer a democracia. E não o contrário.
Carolina Ricardo, advogada e socióloga, é diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.
Texto da série Segurança Pública – Mitos e Fatos, sob curadoria de Marcos Lederman.
Referências:
[1] Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52634816.
[2] Para detalhes desse processo, ver matéria de Allan de Abreu, publicada na revista Piauí, Edição 182, novembro de 2021: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-aparelho/.
[3] Ver análise disponível aqui: https://bit.ly/NotaMecanismos e matéria do Jornal Nacional: https://globoplay.globo.com/v/10524979/.
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