Entrevistas

Rodrigo Azevedo: ‘Apoio da sociedade ao combate à inflação é uma grande questão’

Valor

O risco de uma estagflação no mundo está à mesa, e isso coloca todos os olhares sobre os próximos passos do Federal Reserve (Fed), que tomará sua decisão de política monetária amanhã. Para Rodrigo Azevedo, sócio e diretor da Ibiuna Investimentos, o banco central americano ficou “atrás da curva”, ou seja, demorou para responder ao aumento da inflação.

Agora, constatado que a inflação não é um fenômeno passageiro, o Fed terá que ser mais duro e levar o juro para o campo restritivo. A questão é que, tantos novos elementos na equação – como redução da globalização, aumento de custos com transição energética e defesa, menor ociosidade e encolhimento da poupança -, provavelmente esse juro de equilíbrio está mais alto. Há a possibilidade, portanto, de a taxa ir para 4% ou 5%. Mas o nível de incerteza neste momento é tamanho que torna as fronteiras entre o que seria juro neutro e restritivo ainda turvas, dificultando qualquer previsão mais firme. “Vai ser um processo de tentativa e erro, pelo seu ineditismo”, diz Azevedo.

O que, aponta ele, parece certo é que os movimentos do Fed têm potencial para manter os mercados bastante instáveis. “O Fed é o banqueiro central do mundo. Se ele aperta demais os juros, a liquidez some e os mercados desabam”, diz Azevedo, que ocupou posto de diretor de Política Econômica do BC.

No Brasil, o Banco Central já colocou a taxa de juros em terreno contracionista. Ainda assim, o processo de desinflação foi menor do que o esperado. A Ibiuna está revisando sua projeção de inflação para 2022 para um número próximo a 8,4%. Isso pode significar que, encerrado o ciclo de alta, a Selic tenha que permanecer inalterada por um período longo.

A recessão dos Estados Unidos esperada para o ano que vem e para 2024 pode virar uma recessão global”

O perigo que se vislumbra diz respeito à determinação das autoridades em combater esse quadro de inflação que, segundo Azevedo, amplia de forma clara a desigualdade social que se deseja combater. “Vale lembrar que a Primavera Árabe foi, em larga medida, provocada pelo aumento de preço de comida”, diz. “Haverá suporte da sociedade para trazer a inflação para baixo? Esse é um capítulo importante da história de 2023 e 2024, e não só no Brasil.” A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: O que aconteceu com mercado nas últimas semanas que parece ter interrompido onda do otimismo?

Rodrigo Azevedo: Uma parte da história é que o mercado está acordando para a ideia de que houve uma mudança de paradigma, de um quadro de inflação baixa que dominou o mercado desde a crise de 2008 até a pandemia, para outro de inflação alta mais persistente. Esses processos não são lineares, demandam dados, informações, tempo, mas chega uma hora em que o mercado começa a precificar. E a outra parte da história tem a ver com o comportamento do banco central nesse novo ambiente. Se o paradigma era conduzir política monetária na fronteira do juro zero, a ação do banco central é preventiva, tem flexibilidade, tem tempo e não tem tanta urgência. Quando você está no paradigma da política monetária convencional, a inflação tem que ser trazida de volta para meta e isso exige política monetária contracionista. Nesse ambiente, se você demorar para agir, você fica atrás da curva, e demora muito mais para trazer a inflação para baixo.

Valor: O Fed está atrás da curva?

Azevedo: Tranquilamente o Fed está atrás da curva e tentando voltar à curva. O Fed demorou para responder a uma inflação que estava substancialmente acima da meta de médio prazo. No ano passado, a percepção era de que o choque inflacionário seria temporário. Mas o tempo foi passando e foi ficando claro que choques eram mais persistentes, juntamente com uma economia muito mais aquecida e um mercado de trabalho muito mais apertado. E aí veio uma segunda onda de choques associada à guerra da Ucrânia, com disrupções nos mercados de commodities e cadeias produtivas. Só que, no ano passado a gente tinha ainda muito ociosidade no mercado de trabalho. E neste ano o mercado de trabalho dos EUA está muito apertado. A chance de que os repasses salariais se perpetuem aumentou bastante. Então, se você acha que a inflação é temporária, você pode se dar ao luxo de não fazer muita coisa, mas, se há o risco de entrar na espiral preços-salários que afete as expectativas de inflação de médio prazo, é importante ter uma ação mais incisiva do banco central.

Valor: Então o mercado reage porque acha que o Fed vai ter que agir de forma mais firme?

Azevedo: Exatamente. Só que o Fed tem um problema grande. Ele é o banqueiro central do mundo. O custo de oportunidade de qualquer ativo financeiro no Brasil ou no mundo é a taxa de juros em dólar. Se subir muito abruptamente a taxa de juros em dólar, ele seca a liquidez do mundo inteiro. Então o processo tem que ser vagaroso. E ele está fazendo essa transição, dando uma má notícia por semana. E aí as pessoas descobriram que tem uma grande chance de ter que apertar a política monetária e apertar muito, e quando se precifica isso os mercados reagem porque aumenta a chance de ocorrer uma recessão.

Valor: Qual deve ser o juro final no fim do ciclo?

Azevedo: Há muitas dúvidas. A primeira dúvida é se o Fed vai parar no ponto neutro ou se vai para o terreno restritivo. A segunda é qual é o juro neutro. Antes da crise financeira de 2008, achava-se que era 4% [2% de inflação mais 2% de juro real]. No período entre a crise financeira e a pandemia, a sabedoria convencional era de que a taxa de juros real no mundo caiu e que, nos EUA, ela ficou em 0,5%, com o neutro em 2,5% [2% de inflação e 0,5% de juro real]. No entanto, quando o Fed subiu a taxa de juros em 2018 para 2,5%, a bolsa caiu 20% no quarto trimestre de 2018, um indicativo de que o neutro era mais baixo. Só que, naquele momento, talvez aquele fosse o paradigma de inflação baixa. Se você voltou para um ambiente de inflação alta, será que as mesmas forças que trouxeram a taxa de juro real para baixo continuam valendo?

Desinflação tem que acontecer, porque já estaremos indo para o terceiro ano de inflação fora do teto da meta”

Valor: O que mudou desde então?

Azevedo: Estamos vendo um processo de reversão da globalização. Globalização foi uma força importante em reduzir a inflação e criar ociosidade no mundo, e hoje vemos um grande processo de regionalização. Outra coisa importante é a transição para uma matriz energética mais limpa, que gera custos mais altos durante a migração. E temos ainda a necessidade de elevar os gastos de defesa. Ao mesmo tempo, elementos que contribuíram para a baixa inflação, como maior ociosidade e excesso de poupança, estão se revertendo.

Valor: Isso significa, então, que o juro neutro é mais alto?

Azevedo: A taxa de juros neutra geralmente é estabelecida por uma taxa de juros real, e não nominal. Se eu acho que tenho uma taxa de juros real de 0,5%, mas a inflação vai se estabilizar em 3%, a taxa de juros neutra vai ser 3,5%. E, se quero estar contracionista, eu preciso estar acima disso. Então, neste momento estamos descobrindo que: 1) o juro precisa estar em território contracionista; 2) existe uma série de forças que indicam que a taxa de juros real é maior do que era antes; 3) a inflação para onde se está voltando deve ser maior que antes. Então, para ser contracionista, eu acredito que o juro tenha que ir para 4% ou 5%, do ponto de vista de taxa de juros do Fed. Mas no momento não existem elementos suficientes para fazer uma projeção sólida.

Valor: Mas o Fed pode acelerar o passo e subir o juro em 0,75 ponto?

Azevedo: O Fed é “data dependent”. A ideia de que ele fará 0,50 ponto [de alta], e não de 0,75 ponto, passa pela visão de que haverá uma desaceleração da inflação no segundo semestre. Se isso não ocorrer, ele vai ter que ser mais agressivo. E aqui não é dizer que o Fed, o BCE ou o Roberto Campos erraram. Nossos modelos, dos economistas como um todo, não estão funcionando bem. Isso leva a uma nova incerteza sobre o futuro, maior do que o normal. Houve um choque de magnitude nunca visto antes, que foi a pandemia. Depois, a magnitude da resposta,seja monetária, seja fiscal, foi sem precedentes. Então, não se tem uma ideia boa de qual o impacto isso tudo trouxe. Estamos aprendendo. E aí, é normal errar projeções.

Valor: Vemos que a curva de juros e a bolsa americana ainda não precificam a alta indicada pelo Fed. Existe um descrédito por parte do mercado em relação ao banco central?

Azevedo: Na verdade, quando olhamos os “dots” do Fed em dezembro e em março [a expectativa das autoridades do Fed sobre inflação e taxa de juros futuro], eles estavam acima da precificação de mercado. Então, o Fed está atrás da curva em relação à inflação mas está na frente do mercado em relação ao juro. Existe a percepção de que o Fed não vai conseguir apertar o juro tanto quanto está indicando porque vai gerar uma recessão. Isso por causa da experiência de 2018, quando o [presidente do Fed, Jerome] Powell, continuou o ciclo de alta da [então presidente Janet] Yellen, e a bolsa caiu 20%, o que levou à interrupção do ciclo de alta. E é curiosa essa situação porque queda do preço das ações significa um aperto nas condições financeiras. O mercado está dizendo: você vai subir os juros, as ações vão cair, vai apertar as condições financeiras junto com o aumento de crédito e, portanto, não será necessário entregar todas as altas de juros que o Fed está dizendo que fará. Só que o tempo passa e a queda do mercado não acontece. Quanto mais a bolsa resiste, mais os juros vão ter que subir. Uma hora alguém vai olhar e dizer que a conta não fecha e o mercado vai desabar. A dúvida é quando. Mas esse momento vai chegar.

Valor: Como o restante do mundo desenvolvido está lidando com esse cenário?

Azevedo: É interessante pensar fora dos Estados Unidos, por exemplo, no Japão e na China. A inflação é um fenômeno marcante no mundo ocidental, mas ele é menos relevante na Ásia. Isso está criando uma situação de divergência de política monetária no mundo desenvolvido. Quando a divergência é grande, isso dá problema. Estamos ouvindo o Fed dizer que vai apertar o juro, e a aposta do mercado é que ele vai ser bastante contracionista. De outro lado, o banco central do Japão (BoJ) está dizendo que não vai subir os juros. O BoJ informou que fará leilões diários para manter a taxa de juros de dez anos em 0,25%, uma sinalização muito forte de que o banco vai deixar a política monetária muito frouxa. Assim, o diferencial do juro dos Estados Unidos e do Japão vai aumentar, enfraquecendo o iene. A China, que não tem inflação, também não vai subir o juro e a relação do dólar ante o yuan também se deprecia. O problema grande é que o fortalecimento do dólar, em geral, aperta as condições financeiras para o mundo.

Valor: E a Europa?

Azevedo: A Europa não pode suportar um euro extremamente fraco porque isso eleva muita inflação. Então, se o Fed subir bem mais os juros, a Europa vai ter que acompanhar. E a recessão dos Estados Unidos esperada para 2023 e 2024 pode virar uma recessão global. A Europa, em particular, se tiver que acompanhar os Estados Unidos, pode ter uma desaceleração significativa. Se os Estados Unidos tiverem que subir juros para 4% nos próximos 12 a 18 meses, realmente existe a chance grande de ter forças estagflacionárias no mundo.

Valor: Além da alta de juros, haverá a redução do balanço do Fed. Que impacto isso terá?

Azevedo: Existe uma relação entre quanto de aumento de taxa de juros equivale ao aperto do balanço. É possível que o Fed faça isso num processo de tentativa e erro. E isso será calibrado. Porém, destaco que se estamos falando de divergência de política monetária e grandes movimentos de taxa de câmbio na Ásia. Precisamos lembrar que esses bancos centrais utilizam sistematicamente mecanismos de intervenção para suavizar os processos, como venda de dólar e, por consequência, venda de treasuries. Então, podemos ter um “quantitative tightening” turbinado. Não é só o treasury que está no balanço do Fed que será reduzido, mas também aquele que está nos balanços de todos os bancos centrais da Ásia, o que é mais complicado porque o Fed não tem controle sobre eles.

Valor: Como está posicionado o Banco Central do Brasil?

Azevedo: O Banco Central tem reagido. Mas, como política monetária tem defasagem, a gente não viu ainda o grosso do impacto da alta dos juros. Esperava-se que a inflação sairia de 11% para 5% neste ano e cairia para 3% em 2023. Agora, muita gente está vendo inflação acima de 8% [a Ibiúna revisou a projeção do IPCA deste ano para 8,4%]. Se for isso, a desinflação terá sido muito pequena, e a maior parte desse movimento terá que acontecer no ano que vem e em 2024, em um ambiente em que o mundo estará caminhando para uma desaceleração e potencial recessão. No Brasil, será o início de um novo governo, que será cobrado politicamente para dar uma série de respostas, inclusive sobre crescimento. Mas essa desinflação tem que acontecer, porque já estaremos indo para o terceiro ano de inflação fora do teto da meta, o que eleva a chance de voltarmos a ter uma inflação persistentemente alta. Essa é uma situação de muita cautela e monitoramento. E ainda tem uma incerteza enorme sobre qual regime fiscal vai prevalecer no Brasil a partir de 2023. Essa é uma fragilidade que dificulta muito o raio de ação do Banco Central.

Valor: Existe espaço para o BC esperar para agir, ou nesse ambiente ele tem que seguir com as altas?

Azevedo: O juro já está em território contracionista, então agora é uma questão de sintonia fina. O que o mercado precifica é que, se precisar subir mais, será num ritmo de 0,5 ponto, e ninguém acha que vai precisar subir a taxa para 15%. Mas provavelmente, terminado o ciclo, o juro vai ter que ficar nesse patamar por muito tempo. A ideia de que, passada a eleição, a taxa começa a cair valia quando estávamos com inflação começando 2023 em 5%. Com inflação em 8%, é outra história.

Valor: As eleições ainda vão trazer muita volatilidade?

Azevedo: A eleição é relevante à medida que você conhece o programa econômico de cada candidato. Tudo o que a gente ouviu até agora do candidato líder das pesquisas não indica uma queda rápida da inflação. Existe uma demanda legítima por mais gastos sociais, de mais crescimento. Mas é importante levar em consideração como será o ponto de partida do governo: inflação alta, forte endividamento e economia com crescimento baixo há muito tempo. Depois da crise, somos um dos países mais endividados do mundo emergente. Um cenário de taxa de crescimento de 1,5%, taxa de refinanciamento da dívida de 5,5% e um volume de dívida de 80% do PIB claramente está demandando um ajuste primário relevante, de 2 a 3 pontos do PIB. Você consegue rodar com essa dívida assim por um tempo, mas isso significa muita incerteza e, com isso, não se consegue melhorar muito o crescimento. Se o ajuste não for feito, a situação pode piorar.

Valor: A expansão fiscal vai ser um problema daqui para frente?

Azevedo: O problema não é tanto a expansão fiscal que virá, mas a que já foi houve, e que não foi feita para um mundo de taxa de juros real positiva. Financiar uma dívida elevada a juro zero não era um problema. Com juro real positivo, em alguns casos muito positivo, a carga de juros aumenta, em um momento em que você tem aumento da desigualdade, demanda por mais gastos militares e transição climática. E em um momento em que o “zeitgeist” [espírito do tempo] não é muito favorável.

Valor: Parece uma grande encruzilhada…

Azevedo: E tem uma outra questão importante que é saber qual será o suporte da população ao combate à inflação. É sabido que um dos fatores que mais aumentam a desigualdade é a inflação, em particular a de alimentos, que pressiona muito mais nas famílias de baixa renda. Se a inflação persistir, aumenta a desigualdade. Mas o combate à inflação, em um primeiro momento, aumenta o desemprego, o que exacerba a desigualdade. Então, em uma sociedade que meritoriamente tem uma preocupação maior com desigualdade, esse é um desafio particularmente grande. Haverá suporte da sociedade para trazer a inflação para baixo? Esse é um capítulo importante da história de 2023 e 2024, e não só no Brasil. Vale lembrar que a Primavera Árabe foi, em larga medida, provocada pelo aumento de preço de comida. Até agora, os preços dos alimentos subiram, e você ainda tinha oferta relevante. Agora, você tem disrupções grandes de cadeias importantes, o que exacerba essa questão.

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