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Duas viradas

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O mercado atualmente espera que a economia cresça 0,70%, e que a inflação termine 2022 em 7,89%. Essas projeções vêm melhorando, no caso do PIB, e piorando, no caso da inflação, desde o início do ano.

A melhora das perspectivas para o PIB reflete uma série de desenvolvimentos, mais ou menos previsíveis, a partir do final de 2021. Em primeiro lugar, a atividade econômica, medida pelo PIB, surpreendeu positivamente no quarto trimestre do ano passado, com crescimento de 0,5%. Tal surpresa refletiu uma queda da taxa de poupança das famílias para apenas 1,8%, abaixo da média histórica, 7% – para seguir consumindo, ou atender certas demandas reprimidas, as famílias começaram a gastar parte da poupança extra que acumularam nos piores momentos da pandemia.

Ou a economia tem forte desaceleração no 2º semestre ou uma expansão bem maior do que se espera hoje

Houve também uma série de ações fiscais, nos diversos níveis de governo. Todos os grandes Estados concederam expressivos aumentos de salários para o funcionalismo. Além disso, o salário mínimo teve alta de 10,18% na virada do ano. Os salários no setor privado, monitorados pelo Idat-Salário do Itaú, tiveram aceleração de 7,4% em outubro de 2021 para 8% em dezembro e 9% em março passado, na comparação interanual. Essa dinâmica salarial implica mitigação da perda do poder de compra, e ajuda a sustentar o consumo. O mesmo será amparado, também, pela liberação de recursos do FGTS, que deve inflar a atividade em meados do ano, ainda que de forma temporária.

O programa social de combate à extrema pobreza foi expandido, elevando a base de beneficiários de cerca de 14 milhões para 18 milhões de famílias, com o benefício médio saindo de cerca de R$ 190 para R$ 410, implicando um aumento da transferência governamental para essas famílias de R$ 4,7 bilhões ao mês ou R$ 56 bilhões em um ano (0,6% do PIB).

Outro fator positivo tem sido a própria reabertura da economia. Se considerarmos indicadores de mobilidade social, fica aparente que a remoção das últimas restrições motivou um retorno mais intenso e frequente a lugares de trabalho, o que tem alimentado uma recuperação de certas atividades, notadamente no setor de serviços, voltadas para o atendimento do público em horário comercial em áreas mistas ou não residenciais das cidades.

Finalmente, a guerra europeia teve como consequência a elevação dos preços das commodities, o que tende a beneficiar a economia brasileira – em geral, cada 10% de alta do preço das commodities exportadas implica melhora de 0,4% no crescimento do PIB.

O saldo desses eventos é uma economia que deve apresentar crescimento anualizado por volta de 4% no primeiro semestre. Isso ocorre a despeito de um intenso ajuste da taxa Selic, nada menos que 10,75%, desde março de 2021. Nesse movimento, a taxa de juros real, descontada a expectativa de inflação 12 meses à frente subiu pouco mais de 6 pontos percentuais, de 1% para 7% ao ano.

Assim sendo, o vigor da atividade que estamos observando pode estar refletindo a conhecida defasagem (longa e variável) embutida no mecanismo de transmissão da política monetária, ou pode ser evidência de que a taxa de juros neutra da economia (aquele patamar que não acelera, nem desacelera, a atividade) teria subido de forma importante. A conclusão é que, ou a economia tem uma forte desaceleração no segundo semestre, seja pelo esgotamento de estímulos transitórios, como o efeito-normalização e o desembolso do FGTS, ou pelo impacto mais intenso de ações pregressas de política monetária, ou ainda pela normalização da taxa de poupança, ou o PIB de 2022 terá crescimento bem mais expressivo do que se espera atualmente – bem superior, mesmo, às projeções oficiais de 1,5%.

Como mencionado acima, a resiliência da atividade reflete, em parte, a recuperação dos salários. Isso, por outro lado, ajuda a realimentar as pressões inflacionárias. A persistência inflacionária é mais evidente nos preços de serviços, que habitualmente são reajustados com base na inflação passada. A elevação dos preços de matérias primas contribui para a atividade econômica, mas também para manter as pressões inflacionárias.

Com isso, temos uma taxa de inflação rodando em torno de 12%, ante expectativas de desaceleração para cerca de 8% para o final do ano. Para que essas expectativas se materializem, será preciso uma importante desinflação, em especial dos preços de produtos industrializados, o que depende dos efeitos da política monetária e da taxa de câmbio. É verdade que o real vinha tendo desempenho melhor do que o esperado nesse ano, em parte outra consequência da guerra e graças à elevação da Selic. Mas a volatilidade da moeda tende a limitar sua potencial contribuição desinflacionária.

Efetivamente, projeções de inflação anual na faixa entre 7% e 8% em 2022, embutem, para o que resta do ano, um rápido retorno às taxas mensais médias observadas em 2012-2018, isto é, o fim do atual surto inflacionário – o recuo das taxas médias mensais próximas de 0,9%, que temos observado desde o último trimestre de 2020, para próximo de 0,6%. Essa seria a segunda inflexão importante necessária para confirmar o cenário consensual vigente.

Em suma, vamos nos aproximando da metade do ano e a visão consensual sobre a economia tende a ser desafiada pelos fatos. Ou teremos duas inflexões importantes, tanto na atividade quanto na inflação, ou o ano pode terminar com taxas de crescimento e inflação bem acima do esperado.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/duas-viradas.ghtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Mario Magalhães Carvalho Mesquita