Folha
Gigantescos canhões apontados para o céu projetam à estratosfera toneladas de enxofre, buscando replicar os efeitos de resfriamento da terra que se verificaram após a erupção do vulcão Pinatubo, nas Filipinas.
Cientistas buscam sugar a água que se acumula sob as geleiras do polo Sul, para retardar seu deslizamento para o mar, e tingem de amarelo o oceano Ártico, para evitar a absorção de raios solares. Ecoterroristas armados de drones derrubam tantos aviões que as pessoas param de voar, e o mundo passa a considerar seriamente a necessidade de mudança radical no modo de vida, para evitar a extinção.
As situações acima dão-se em um futuro distante apenas algumas décadas, em um mundo desnorteado diante da calamidade climática provocada pela ação humana. Estão descritas em dois livros recentes de ficção científica, de renomados autores americanos do gênero: “Termination Shock”, de Nial Stephenson, e “Ministry for the Future”, de Kim Stanley Robinson.
Foi um importante acadêmico conservador na Universidade de Stanford quem mencionou o primeiro livro, após surpreender-me com uma postura negligente em relação ao aquecimento global. Afirmou que as severas restrições que a União Europeia impõe às emissões de dióxido de carbono (CO₂) terminarão por comprometer gravemente a competitividade da sua indústria e que não crê em um entendimento global para conter as emissões, uma vez que os efeitos da crise climática se distribuem desigualmente entre as nações. Assim, li o livro procurando entender em que creem os que não creem em controle das emissões de CO₂.
O segundo livro foi recomendado pelo fundador de um fundo especializado em empresas que desenvolvem tecnologias de sequestro de carbono e que só investe em planos de negócio nos quais a demanda pela captura esteja determinada por exigências legais, em oposição a compromissos voluntários.
Através desses livros, entrei em contato com o conceito de geoengenharia, que Bill Gates, em seu trabalho sobre a crise climática, classifica como uma solução emergencial extrema, a ser utilizada apenas quando tudo mais tiver falhado. De fato, a premissa de ambos os livros é o fracasso dos esforços mundiais para conter as emissões de CO₂.
A julgar pela evolução das negociações globais até o momento, é bem possível que a premissa venha a se mostrar correta.
O aquecimento global exige uma solução também global. A crise da Covid, que também afetou o mundo inteiro, ainda permitiu que países insulares, como a Nova Zelândia, administrassem o problema através do isolamento completo. Tal solução não é possível para o clima, uma vez que a atmosfera não tem ilhas nem fronteiras. O mundo emite anualmente 50 bilhões de toneladas de CO₂, e os cientistas apontam inequivocamente para a necessidade de reduzirem-se as emissões a zero até meados deste século, para evitar que o aquecimento vá além de 2ºC, considerado o limite tolerável.
O requisito fundamental para obter essa redução é conseguir que os preços de todas as mercadorias e serviços reflitam adequadamente o custo do CO₂ emitido para sua produção e distribuição. Com um preço universal para o CO₂ emitido, criam-se os estímulos econômicos necessários à preservação de florestas, mudanças de hábitos e inovações tecnológicas necessárias para conter o aquecimento global.
Mas o objetivo que se deixa expressar tão facilmente é muito difícil de ser atingido. Um imposto sobre as emissões é a solução mais intuitiva, mas apresenta dificuldades tais que tem sido pouco utilizado na prática. A legislação que aparenta ser mais eficiente até o momento é o sistema europeu de “cap and trade”, através do qual as empresas que reduzem menos do que a meta do setor são obrigadas a comprar créditos das que superam a meta. O preço da tonelada de carbono sob esse mecanismo atingiu € 95.
A Europa, no entanto, está isolada no esforço para o estabelecimento de uma legislação para o clima. Praticamente não há outros exemplos com volume representativo de redução de emissões por força de lei, e os compromissos assumidos pelos países sob o Acordo de Paris não têm sido seguidos de medidas concretas para seu cumprimento.
Nos foros globais, como a COP26, muita ênfase tem sido dada à participação do setor privado e aos compromissos voluntários assumidos por empresas do mundo todo. Embora desejável e podendo contribuir para o objetivo mais amplo, a participação voluntária terá necessariamente um efeito apenas marginal em relação à redução necessária. A principal razão é que as emissões de CO₂ evitadas pelas empresas que têm compromissos públicos, na ausência de uma legislação rigorosa, migram automaticamente para aquelas que não os têm.
Relatório publicado em 10 de maio pelo Environmental Defense Fund (edf.org) mostra que apenas em 2021 efetuaram-se transações no valor de US$ 192 bilhões, através das quais empresas com compromissos públicos venderam ativos emissores de CO₂ para empresas mais opacas, fazendo parecer que os vendedores cortaram emissões, quando estas foram apenas transferidas. Por sua vez, o mercado voluntário de créditos de carbono, que tem experimentado forte crescimento, aproxima-se agora dos 100 milhões de toneladas anuais, apenas 0,2% do montante total de redução almejada.
Entre as ideias que pude conhecer, existe uma que, pela clareza e simplicidade de formulação, me parece a mais efetiva. É defendida por Raghuram Rajan, cujo currículo inclui passagens pela presidência do banco central da Índia e a posição de economista-chefe do FMI. A solução proposta é um sistema de “Incentivo Global de Carbono” (GCI, na sigla em inglês), segundo o qual todos os países com emissões acima da média mundial (hoje sete toneladas per capita/ano) pagariam anualmente a um fundo global um valor equivalente ao produto da multiplicação de sua população pela emissão per capita acima da média e pelo preço por tonelada a ser arbitrado.
Do mesmo modo, o fundo pagaria aos países com emissões abaixo da média um valor calculado pelo mesmo critério. O engenho da proposta reside no fato de que todos os países estariam igualmente estimulados a reduzir suas emissões, seja para reduzir o montante a pagar, seja para aumentar a quantia a receber, mas cada um reteria a soberania para legislar sobre a forma de distribuir os ônus e bônus entre seus agentes econômicos.
O Brasil é dos maiores interessados no estabelecimento de uma governança global para as emissões de CO₂, por ser um dos países com melhores condições de reduzir rapidamente suas emissões e gerar créditos de carbono que poderiam ser vendidos no mercado mundial.
É de lamentar que nosso corpo diplomático de reconhecida competência, em vez de concentrar seus esforços para apoiar a implementação de ideias como o GCI, tenha que gastar seu tempo procurando explicar o injustificável aumento de 75% na área anualmente desmatada na Amazônia entre 2018 e 2021.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2022/05/o-futuro-que-ninguem-quer.shtml
As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.