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Os efeitos da pandemia nas crianças

Essa geração poderá se tornar permanentemente mais desigual

Valor

A aprendizagem das crianças brasileiras foi bastante afetada pela pandemia, assim como sua saúde mental e habilidades socioemocionais. Agora que a pandemia está perdendo força graças à vacinação, é hora de pensarmos em como recuperar estas crianças, para que elas não sejam permanentemente prejudicadas. Como a nossa parcela de jovens com baixo potencial para o mercado de trabalho já é elevada, não podemos nos dar ao luxo de perder ainda mais jovens no futuro.

A figura mostra a porcentagem de crianças de 5 e 6 anos que frequentam a escola desde 2002 até 2022 de acordo com a escolaridade das mães. Podemos verificar, em primeiro lugar, o grande avanço que ocorreu neste indicador desde 2002, especialmente entre as crianças mais pobres, com sua frequência aumentando de 73% para 95%. Entretanto, os dados mais recentes, englobando o período da pandemia, apontam para uma queda bastante preocupante. Entre 2017 e 2022 a frequência escolar entre as crianças das famílias mais escolarizadas caiu de 98% para 96% e entre as menos escolarizadas de 95% para 90%.

A maior queda ocorreu na região Norte, seguida das regiões Nordeste e Sudeste. Essa queda é consistente com dados divulgados recentemente sobre o declínio do alfabetismo entre as crianças durante a pandemia. Por exemplo, a porcentagem de crianças de 6/7 anos que sabe ler e escrever nas escolas públicas (segundo informação dos pais) passou de 60% em 2019 para apenas 46% em 2022. Mesmo entre as que estão em escolas privadas, o alfabetismo declinou de 78% para 69%. Vale notar que a diferença de alfabetização entre as que estudam em escolas privadas e públicas aumentou de 18 para 23 pontos percentuais, ou seja, houve aumento da desigualdade no aprendizado.

As crianças da pré-escola em 2020 aprenderam apenas 64% do que haviam aprendido as crianças de 2019

Um estudo importante analisou dados de aprendizagem e habilidades motoras entre crianças matriculadas em escolas privadas ou conveniadas na cidade do Rio de Janeiro 1. O estudo comparou a evolução destes indicadores ao longo do ano na geração que estava na pré-escola em 2019 com a geração que estava na mesma fase em 2020 e que, portanto, foi afetada pela pandemia. Os resultados mostram que as crianças que estavam na pré-escola em 2020 aprenderam apenas 64% do que havia sido aprendido em matemática pelas crianças da geração de 2019.

Mais ainda, as crianças mais pobres aprenderam somente metade do que foi aprendido em 2019, ao passo que as crianças mais ricas chegaram a 75%. Aqui também o aumento da desigualdade é evidente, ainda mais porque a amostra não envolveu crianças das pré-escolas públicas. O estudo detectou também um aumento de 14% nas crianças de 2020 que não conseguiam sentar e levantar do solo sem usar nenhum apoio e que, portanto, não alcançaram um nível adequado de habilidade motora. Estas crianças tiveram seu desenvolvimento afetado por terem ficado muito tempo em casa durante a pandemia, já que 65% das crianças analisadas ficavam mais de 4 horas no celular ou no computador todos os dias durante a pandemia.

Se nada for feito, muitas dessas crianças irão passar menos tempo na escola, se tornarão jovens nem-nem e irão depender de programas assistenciais pelo resto da vida para sobreviver. Além disso, essa geração poderá se tornar permanentemente mais desigual. O que podemos fazer para reverter esses efeitos? Em primeiro lugar, o governo federal teria que iniciar uma avaliação completa da situação atual, como a que foi feita no estudo citado, para uma amostra de crianças de diferentes idades em todo o Brasil, levando em conta as diferenças entre escolas públicas e privadas e as diferentes regiões do país.

Essa avaliação deveria envolver indicadores de desenvolvimento infantil, aprendizagem, habilidades socioemocionais e saúde mental. Em seguida, de posse dos resultados da avaliação, o governo deveria ter um plano de metas para melhorar esses indicadores em um curto espaço de tempo. Em termos de aprendizagem, por exemplo, a meta poderia ser recuperar os níveis de aprendizado existentes em 2019 em cada município até o final de 2023. Ou seja, as crianças terão que aprender em 2022 e 2023 o conteúdo escolar de 2020, 2021, 2022 e 2023. Quatro anos em dois.

Dado o caráter descentralizado do nosso sistema educacional, para que esta meta seja atingida é necessário que haja parcerias entre os governos estaduais e os municípios de cada Estado para desenho de estratégias. Estas estratégias teriam necessariamente que envolver mais tempo de aula. Para isso, temos que implementar rapidamente escolas em tempo integral por todo o país, para que os alunos fiquem na escola o dia todo, aprendam mais matemática e linguagens, façam exercícios físicos e sejam estimulados através de jogos e brincadeiras.

Nos locais onde ainda não é possível implementar ensino em tempo integral, deveríamos usar as tecnologias de ensino à distância aprendidas durante a pandemia para atingir as crianças em casa. Para que isto seja possível, as redes teriam que entregar chips de celular para todas as crianças em idade escolar e acompanhar o desempenho das crianças nas atividades realizadas à distância.

Além disto, os municípios teriam que usar os agentes da Estratégia Saúde da Família (ESF) para buscar as crianças que estão fora da escola e trazê-las de volta. A ESF atinge 60% dos domicílios brasileiros, principalmente os mais pobres, e pode ser usada também para identificar crianças e adultos com problemas de saúde física e mental. Em suma, é necessário que a sociedade se mobilize para que possamos recuperar o tempo perdido durante a pandemia e salvar a “geração covid”. Caso contrário será ainda mais difícil aumentar a produtividade e reduzir a desigualdade no futuro.

Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (2021) “O impacto da pandemia da Covid-19 no aprendizado e bem-estar das crianças”.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/os-efeitos-da-pandemia-nas-criancas.ghtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Naercio Menezes Filho