O título deste artigo remete à celebre frase da então Ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. Desprezando a proposta de déficit nominal zero apresentada por Antonio Palocci, seu contemporâneo titular do Ministério da Fazenda, foi ali, em 2005, que se iniciou o que viria a ser uma desastrosa inflexão nas políticas fiscal e econômica brasileiras.
A partir daí a história é bem conhecida. E os números mais ainda. O déficit nominal, que vinha caindo e rodava então em torno de 3% do PIB, continuou girando nesse patamar pelos anos seguintes, em boa parte sustentado ventos favoráveis que já em 2011 começam a mudar, expondo um descontrole que em 2014 já era claro e culminou nos conhecidos 10,2% de déficit nominal ao final de 2015. Em 2018 inicia-se um movimento de reversão, consequência do teto de gastos, aprovado ao final de 2016 e cujos efeitos estavam em vigor nesse ano. Mais recentemente — e à exceção dos anos da pandemia — a melhora na trajetória é reforçada pelos resultados do congelamento dos salários do funcionalismo público e do crescimento das receitas tributárias, turbinadas pela inflação. Ao final de 2021, o déficit nominal bate 4,4% do PIB segundo os dados da Instituição Fiscal Independente (IFI).
Pode parecer boa notícia. Mas, apesar de exaltações pontuais, nem política de congelamento de salários e nem inflação são mecanismos sustentáveis de ajuste fiscal. Além disso, a combinação de níveis elevados de despesas em trajetória estruturalmente crescente e boa parte delas obrigatórias, com o enfraquecimento do teto de gastos e de nossas instituições fiscais mostra que qualquer melhora é pontual. Daí a importância de se avançar num processo amplo e sistemático de revisão dos gastos públicos no Brasil.
Os processos formais de revisão de gastos públicos (Spending Review) não são novidade no mundo. Ao contrário, eles já são adotados na grande maioria dos países desenvolvidos. Em 2020, 84% dos 37 países membros da OCDE seguiam um processo formal de revisão de gastos com o objetivo de melhorar a qualidade na alocação dos recursos públicos. Dentre eles, Austrália, Chile, Canadá e Reino Unido o fazem de forma periódica há décadas e com resultados positivos amplamente documentados.
O Reino Unido implementou seu processo de revisão periódica de gastos em 1998. Integrado ao ciclo orçamentário, motiva o debate público e engaja a sociedade na discussão sobre as prioridades da política pública. Na Austrália, a revisão de gastos data de 1976 e se baseia nos processos de avaliação de impacto das políticas públicas. Na Suécia, a vinculação é com os subtetos temáticos de gastos e a revisão de gastos atua como um instrumento de busca de maior eficácia e sustentabilidade.
No Brasil essa discussão começou em 2017, com o PLP 428 de autoria do Senador José Serra e aprovado por unanimidade pelo Senado Federal no mesmo ano. Hoje o PLP encontra-se parado na Câmara dos Deputados, mas voltou a ganhar os holofotes com a dificuldade atual de se conciliar o teto de gastos com a dinâmica das despesas obrigatórias e o esvaziamento do espaço discricionário no orçamento público.
Os programas de Revisão de Gastos têm como objetivo escrutinar a despesa pública de forma a avaliar a sua adequação (ou não) às prioridades de política pública; a sua eficácia do ponto de vista dos objetivos previamente estabelecidos; e a eficiência dos gastos públicos vis-à-vis os seus custos. Embora por vezes estigmatizado pelo seu importante papel no ajuste fiscal inglês do final dos anos 2000, a revisão de gastos é menos um instrumento de corte de despesas e mais um processo para que se identifiquem oportunidades de ganhos de eficiência.
As boas práticas mostram que os programas consolidados e implementados com sucesso dependem do engajamento político e da definição e comunicação claras dos seus objetivos. Afinal, com transparência, uso de diagnósticos técnicos e de dados e com independência na execução e no monitoramento dos resultados, garante-se o engajamento da sociedade, esse sim um grande fator de sucesso.
No Brasil, onde o processo orçamentário foi capturado por uma combinação de despesas obrigatórias e emendas de relator, a adoção de um programa de Revisão de Gastos será passo fundamental na direção do resgate do orçamento público como instrumento de planejamento, transparência e diálogo com a sociedade. Será o caminho para viabilizar o redirecionamento dos recursos públicos para os que mais precisam deles. Pois, sim, gasto público é vida. Mas só quando há qualidade, adequada priorização, responsabilidade fiscal e eficiência. Conceitos todos ausentes na nossa estrutura de gastos públicos e que precisarão ser resgatados.
Artigo da série Qualidade do Gasto Público, sob curadoria de Ana Carla Abrão.
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