Cultura não é apenas indústria. Quando um grupo de estudantes encena em praça pública uma peça sobre o folclore amazônico, falamos de cultura, mas não de indústria. Quando jovens em situação de vulnerabilidade social encontram em um grupo de dança afro uma possibilidade de realização pessoal e profissional, é certo que se trata de cultura, mas não necessariamente de indústria. E pode-se dizer o mesmo do adido cultural que, em Roma, organiza um colóquio sobre o modernismo brasileiro. A cultura é um fenômeno com muitas dimensões: simbólica, social, geopolítica e, também, econômica.
Assim, reconhecer que cultura não é apenas indústria não equivale a dizer que não seja indústria também. E das grandes, o que não é óbvio para todos. Dados recentes da UNESCO mostram que, apesar do tombo de 20% em relação a 2019, culpa da pandemia, as indústrias culturais e criativas – arquitetura, música, livros, cinema, televisão, rádio, jornais, revistas, publicidade, artes performáticas, artes visuais e jogos eletrônicos – adicionaram US$ 2,65 trilhões à economia global em 2020. Se fossem um país, seriam a 5ª economia do mundo.
É lugar-comum dizer que, ao longo das últimas décadas, o peso da economia global se deslocou dos bens tangíveis para os intangíveis. Poucos atentaram, contudo, para uma segunda fase desse movimento, impulsionado pela revolução digital, em que a criação estética se une à inovação tecnológica como eixo de desenvolvimento econômico para qualquer país que almeje a relevância global. Gilles Lipovetsky e Jean Serroy chegam a anunciar a emergência de um “capitalismo artista”, onde não apenas carros e roupas, mas até uma prosaica garrafa de água mineral tem pretensões estéticas, na esteira de um processo de espetacularização que se radicalizou com a ubiquidade das mídias sociais. Pense no que ainda virá: realidade virtual e aumentada, blockchain, inteligência artificial.
Nas economias avançadas, há muito não é necessário sequer defender a existência de uma dimensão econômica da cultura, base de muitos investimentos públicos nas chamadas indústrias criativas. Em qualquer país, mesmo nos mais ricos, cultura é um negócio arriscado, pois ninguém sabe de antemão onde está o sucesso. Há inúmeros destinos mais lucrativos e/ou seguros para os recursos que poderiam se direcionar à cultura. O apoio do Estado reduz riscos e viabiliza investimentos privados no setor, e assume múltiplas formas: incentivos fiscais, subsídios, compras públicas, apoio na abertura de mercados internacionais, linhas de crédito consensual, etc. Não se trata de uma benesse, mas de política econômica. Tampouco se trata de uma exclusividade dessa indústria.
No Brasil, outros setores da indústria contam com incentivos fiscais muito mais vultosos do que os direcionados às indústrias culturais. Em 2021, a cultura, incluindo o audiovisual, recebeu R$ 1,9 bilhão em incentivos, segundo a Receita Federal, pouco mais de 0,5% do total dos incentivos fiscais federais, de R$ 307,9 bilhões O setor de embarcações e aeronaves, por exemplo, recebeu R$ 4,5 bilhões; automotivo, R$ 5,9 bilhões; o agronegócio, R$ 32,7 bilhões. Com uma diferença importante: nenhum desses mecanismos, significativamente mais onerosos aos cofres públicos, se submete a uma fração do controle público imposto ao setor cultural quanto à aplicação dos recursos. Por quê? Porque são compreendidos como parte de uma política industrial, enquanto os incentivos à cultura são equivocadamente compreendidos como uma política meramente compensatória. Até certo ponto, são, como são as políticas de auxílio ao pequeno produtor rural ou ao microempresário, mas em sua integralidade buscam contribuir para o desenvolvimento de um setor produtivo forte, capaz de competir globalmente, e do próprio país.
Grande parte da má vontade com que muitos formadores de opinião tratam as políticas de incentivo à cultura nasce dessa visão comum, embora limitada, a respeito dos fundamentos e objetivos das políticas públicas de cultura, notadamente dos mecanismos de fomento setorial. A estrutura de fomento e regulação que surgiu na esteira da Constituição de 1988 e se expandiu nos anos 2000 mudou essa indústria de patamar. No audiovisual, a produção nacional passou de meia dúzia de filmes por ano para quase 200 longas-metragens em 2018 e hoje ocupa espaço inédito nas grades de programação, da TV ao streaming. Amplie-se a análise para outros segmentos e veremos que a maior parte deste setor que, pelas estimativas oficiais, responde por algo entre 2% a 3% do PIB e emprega 5 milhões de pessoas sequer existiria sem apoio oficial. Não é coincidência, é política pública.
Em um precioso trabalho elaborado para o BNDES ainda em 1993, intitulado “O Que é Política Industrial?”, Cláudio R. Frischtak definiu esse conceito como “uma visão estratégica do futuro industrial do país (…), e os meios – instrumentos, mecanismos e arranjos institucionais – de concretizá-la”. Para formulá-la, “é necessário um ‘projeto’ de indústria, uma visão de sua configuração futura, um desenho do que é simultaneamente desejável e realizável; a identificação das barreiras interpostas a este projeto; e os meios que possibilitam remover esses obstáculos de forma organizada, programática”. Algumas dessas políticas são reativas, e têm por objetivo corrigir distorções geradas pelas muitas falhas que todo mercado tem e sempre terá, além das barreiras estruturais e circunstanciais específicas do país; outras são antecipatórias, um artefato, um meio para se atingir a um fim de interesse público.
Em um país como o Brasil, que nasceu e cresceu sob o signo da exploração dos recursos naturais e mal completou seu processo de industrialização, a relevância econômica dos chamados bens simbólicos ainda passa longe do senso comum. No entanto, embora não seja óbvio para todos, o Brasil é uma potência cultural. Nossa produção artística, da música ao design, do audiovisual à literatura, conta, há muito, com um grau de aceitação internacional impensável para a maior parte da nossa pauta de exportações, particularmente entre os raros setores intensivos em capital intelectual. Aliás, as políticas públicas de fomento estão entre as únicas formas de viabilizar a produção em larga escala de obras protegidas por direitos de propriedade intelectual cuja titularidade permaneça no Brasil, retendo aqui seu potencial de remuneração futura, uma verdadeira raridade em nossa matriz econômica.
Vale acrescentar, ainda, que a cultura é uma indústria profundamente dependente do trabalho humano, com muitas externalidades positivas e de baixo impacto ambiental, especialmente se comparada às indústrias que formam a base de nossas exportações, como o agronegócio, a mineração ou a indústria de base. Em tempos de automação ilimitada e sob a ameaça de um colapso ambiental, quem ousaria subestimar tais qualidades? Mais importante que isso: a produção cultural é uma vocação brasileira, que brota naturalmente de um território, ou um conjunto de territórios, amplo, diverso e solar.
No contexto sociotecnológico em que vivemos, subestimar a importância de se fomentar e preservar a produção cultural brasileira é um erro. A perda de espaço no mercado de bens culturais pode facilmente levar um país a um papel simbólico secundário, que em nada condiz com a potência expressiva brasileira. Somos o país de Machado e Drummond, do samba e do choro, da Bossa e do Cinema Novo, da Tropicália. Não é uma cultura qualquer.
Cláudio Lins de Vasconcelos, doutor em direito internacional pela UERJ e mestre pela University of Notre Dame, foi secretário nacional de economia da cultura do Ministério da Cultura. Professor do mestrado profissional em economia e política da cultura da UFRGS e da pós-graduação em direito da propriedade intelectual da PUC-Rio. Membro do Conselho Empresarial da Indústria Criativa da FIRJAN.
Artigo da série Cultura – Construindo uma Nação, sob curadoria de José Olympio Pereira.
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