O alívio no mercado de energia e a relativa estabilidade do real têm apontado para o início da dissipação dos choques
Valor
A caixa de ferramentas dos macroeconomistas inclui diversas variáveis que são muito importantes, mas não diretamente observáveis, e que precisam ser estimadas, tais como a taxa de câmbio real de equilíbrio, o PIB potencial, a taxa estrutural de desemprego e a taxa de juros neutra. Esta pode ser definida como o patamar de taxa de juros real que não acelera, nem desacelera a economia. Simplificando bastante, para desinflacionar a economia, as autoridades devem aumentar a taxa real além do patamar neutro. Inversamente, para reinflacionar, cabe reduzir a taxa abaixo do patamar neutro.
Ao final de 2020, o mercado esperava inflação de 3,3% em 2021, e o BC projetava 3,4%. O IPCA acabou o ano com inflação de 10,1%, um dos maiores erros de projeção desde o início do regime de metas. Claro que vivemos um período excepcional, dados os efeitos da pandemia, no qual os modelos tradicionais, calibrados para períodos “normais”, tendem a ter desempenho pior. Mesmo assim, os erros de projeção demandam estudo.
Tamanha surpresa inflacionária pode, a princípio, resultar de um erro de modelagem, por exemplo, derivado de se subestimar a taxa de juros neutra. Se a taxa de juros neutra utilizada para fazer as projeções está muito abaixo daquela que efetivamente vigora em determinada economia, então as projeções tenderão a subestimar, talvez de forma expressiva, a inflação. Em outras palavras: é possível que a surpresa inflacionária de 2021 seja simplesmente consequência de uma elevação da taxa de juros neutra, que teria pegado de surpresa economistas do setor privado e do governo também. O aumento da dívida pública, comparado a padrões pré-pandemia, em escala global, pode ser uma explicação para um possível aumento da taxa neutra internacional, com implicações para o Brasil. Mas as evidências sobre esse efeito são inconclusivas.
Uma forma de testar a hipótese de elevação da taxa neutra é fazendo um pouco de engenharia reversa. As economistas do Itaú Júlia Gottlieb e Luciana Rabelo fizeram um exercício nessa linha. Elas utilizaram um modelo simples, onde a inflação depende da inércia, do hiato do mercado de trabalho e dos preços de commodities em reais. O índice considerado foram os preços livres excluindo alimentação, que possui uma dinâmica particular, em frequência trimestral. O erro de projeção, levando em conta o comportamento observado dos preços de matérias-primas e taxa de câmbio, foi de 1,3 ponto percentual. Tudo o mais constante, o erro de previsão de 2021 teria sido zero, se a taxa de juros neutra fosse em torno de quatro pontos percentuais mais alta, isto é, cerca de 7% a 7,5% ao ano em termos reais (considerando expectativas de inflação de médio prazo próximas a 4%).
Tamanho aumento, em período de tempo relativamente curto, parece implausível. Tendo em vista todos os choques ocorridos nos últimos anos, não é razoável colocar todo o problema inflacionário na conta do aumento do juro neutro brasileiro. Quando a modelagem incorpora uma variável para medir a pressão no mercado de bens, o erro de projeção cai. Especificamente, quando o modelo inclui alguma variável de estoques, o erro fica em apenas 0,3%. Essas pressões sobre a oferta de bens podem refletir gargalos de oferta e/ou o aumento global da demanda por bens, resultante da mudança de padrões de consumo e do sucesso, acima do esperado, das políticas de preservação da renda adotadas por muitos governos durante a pandemia.
A trajetória da inflação em 2021 refletiu uma sucessão de choques, em especial sobre preços de matérias-primas, eletricidade e combustíveis, que acabaram se espalhando pela economia. Alguns desses choques, a propósito, começaram a atingir a economia ainda na segunda metade de 2020.
Os economistas tendem a dar talvez importância excessiva a medidas de núcleo de inflação, que excluem itens mais voláteis. Isto porque a chamada inflação cheia, que inclui todos os componentes do IPCA, acaba tendo maior influência no processo de formação de expectativas dos formadores de preços, empresas, famílias e sindicatos. Períodos prolongados de inflação cheia alta tendem, assim, a influenciar expectativas e hábitos, e levam a uma intensificação da inércia inflacionária. Cria-se um ambiente inflacionário mais permissivo, no qual os formadores de preço perdem progressivamente o receio de sofrer perda de fatias de mercado ou vendas, quando tentam praticar reajustes.
O alívio no mercado de energia elétrica (as tarifas devem ficar cair um pouco em 2022, depois de alta de 21% em 2021) e a relativa estabilidade do real têm apontado para o início da dissipação dos choques. Se passados os choques e na ausência de novas perturbações a inflação corrente seguir alta e disseminada, a hipótese de que o juro real neutro tenha subido vai se tornar mais plausível.
Entre os diversos desafios enfrentados pelo Banco Central, um dos principais é que uma variável não observável, a taxa de juros neutra, é um dos pilares da modelagem da inflação futura. Além de não ser diretamente observável, a taxa neutra pode mudar, em função de desenvolvimentos globais ou locais. Podemos fazer conjecturas sobre o que ocorreu com a taxa neutra desde o início da pandemia, e é possível que ela tenha subido, mas as evidências mais conclusivas só virão com o passar do tempo.
Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/juros-neutros-em-alta.ghtml
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