Em um país de forte tradição federativa como o Brasil, é fundamental a articulação entre a atuação das três esferas de poder – federal, estadual e municipal – para uma perspectiva de êxito em qualquer política pública. É uma estratégia que se justifica para a otimização dos recursos investidos, mas sobretudo que se impõe diante da complexidade e da diversidade do conjunto de agentes e fatores que atuam na imensidão territorial de nosso país.
No campo da cultura, essa trilha é ainda mais necessária pela singularidade dos seus processos e fenômenos constitutivos, impossíveis de serem reduzidos a simplificações ou estratificações burocráticas, e a demandarem cotidianamente uma interlocução aberta, atenta e afetiva. A implantação de um sistema articulado é uma ação desafiadora, pois requer a constituição de uma ampla rede de legislações, estruturas e programas, que – sinergicamente – deveriam atuar de forma sincrônica.
Desde o início do Brasil republicano, tivemos iniciativas que refletiam essa visão da importância de uma atuação complementar por parte dos agentes federativos, como a criação de museus, arquivos e bibliotecas estaduais e municipais já a partir do final do século XIX; a criação do Departamento de Cultura na cidade de São Paulo na década de 1935; e a criação de órgãos estaduais de preservação do patrimônio a partir da década de 1960, que vieram adensar a atuação do órgão federal, o IPHAN, criado em 1937.
Mas foi sobretudo a partir de 1985, com a criação do Ministério da Cultura, que se iniciou um processo de formulação de políticas e a constituição de estruturas jurídico-administrativas federais, que se ampliaram nas décadas seguintes, e que culminou com a criação do Sistema Nacional de Cultura (SNC), instituído em 2012 por meio do Projeto de Emenda Constitucional 416, que tramitava na Câmara Federal desde 2005. O SNC é um modelo de gestão e promoção de políticas públicas de cultura que pressupõe a ação conjunta dos entes federativos, mediante a adesão voluntária por meios de protocolos de intenção e a instituição de elementos constitutivos do sistema, como órgãos gestores, conselhos de políticas culturais, conferências de cultura, planos de cultura, sistemas de financiamento à cultura e sistemas de informação e gerenciamento de indicadores culturais, resultando num extenso leque de ações e programas. Sua implantação, apesar das dificuldades encontradas (um exemplo significativo é o fato de apenas cerca de 25% dos municípios brasileiros possuírem secretarias exclusivas para a cultura), trouxe destacadas contribuições e especialmente instaurou diálogos e interlocuções inovadoras no cenário cultural.
Um pressuposto central a ser destacado ao se abordar essa questão é o papel da sociedade civil nessa complexa rede de atuação. Falamos da necessidade de políticas públicas de articulação entre os distintos níveis de poder, mas é imperioso indicar que elas devem ser construídas a partir do reconhecimento do papel fundamental que todos os agentes da sociedade civil desempenham nos processos culturais, e que essas políticas devem ser construídas por meio de mecanismos que permitam e viabilizem uma efetiva e ampla participação e representação desses setores.
Esse reconhecimento da importância e necessidade de um trabalho sistêmico e articulado na área da cultura desdobrou-se em iniciativas em muitos outros campos, com resultados produtivos. No campo museológico, por exemplo, tivemos a criação do Sistema Brasileiro de Museus (SBM) em 2004, objetivando a gestão integrada e o desenvolvimento dos museus, acervos e processos museológicos, bem como o incentivo à criação de sistemas estaduais e municipais, e de redes temáticas. A criação do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) em 2009 trouxe a esse processo uma estrutura administrativa própria e específica, permitindo uma atuação mais profícua e efetiva voltada para o fortalecimento dessas instituições e do campo museal, e que tem servido de referência internacional para propostas de iniciativas similares.
O Fundo Nacional de Cultura, criado pela Lei 8.313 em 1991, conhecida como Lei Rouanet, também pode ser visto como outro exemplo dessa visão que busca mecanismos de articulação, descentralização e regionalização, no caso para o financiamento das atividades culturais. É ação que inspirou outras iniciativas de legislações de financiamento da cultura a nível estadual e municipal como, no Estado de São Paulo, o Programa de Ação Cultural (Proac SP), criado em 2006, e no Município de São Paulo, o Programa Municipal de Apoio a Projetos Culturais (Promac), instituído em 2013, a evidenciar o potencial de uma atuação conjunta pelos entes federativos no estímulo e incentivo à cultura.
No atual momento, grande parte dessas políticas, estruturas, programas e organizações federais – apesar de continuarem juridicamente existentes – encontra-se ameaçada, inoperante ou fragilizada, por conta de um governo que priorizou a luta contra a cultura como um de suas atividades centrais, a começar pela extinção do Ministério da Cultura já em seu primeiro dia de atuação. A ação conjunta e articulada entre os entes federativos dissipou-se, num triste exemplo da dilaceração que atravessa a sociedade brasileira no tempo presente. Urge retomar-se outro caminho, que possa devolver à área da cultura mecanismos de atuação condizentes com seu potencial de participação na construção de uma sociedade solidária e igualitária.
Marcelo Mattos Araujo, museólogo, doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, foi diretor do Museu Lasar Segall, da Pinacoteca do Estado de São Paulo e da Japan House São Paulo, secretário de Estado da Cultura de São Paulo e presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Atual diretor-geral do Instituto Moreira Salles.
Artigo da série Cultura – Construindo uma Nação, sob curadoria de José Olympio Pereira.
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