Entrevistas

Desonerar combustível é alocação equivocada de recursos

Daniel Leichsenring critica subsídios a itens como gasolina, que não beneficiam os mais pobres

Valor

O quadro inflacionário no Brasil é muito ruim, mas as soluções apresentadas pelos políticos até agora, sobretudo envolvendo desoneração de combustíveis, representam uma alocação bastante equivocada de recursos, diz Daniel Leichsenring, economista-chefe da Verde Asset, de Luis Stuhlberger.

Nas contas da gestora, o corte de PIS/Cofins e a zeragem de ICMS sobre gasolina e etanol (o Senado aprovou ontem texto-base que limita o tributo em 17%), por exemplo, representariam cerca de R$ 60 bilhões por ano em desoneração. “Nenhum centavo disso vai ser destinado para os 20% mais pobres da população”, afirma Leichsenring, em referência a 42 milhões de pessoas que vivem com menos de R$ 325 por mês (cerca de R$ 10 por dia). “Essas pessoas não têm carro, elas são pobres de verdade.”

As medidas até podem reduzir a inflação neste ano – a Verde estimava um IPCA ao redor de 9% antes dos anúncios -, mas implicarão projeções mais elevadas para 2023, alerta Leichsenring.

Ao Valor ele criticou ainda a “maneira eleitoreira” como o debate ocorre e se disse surpreso com o distanciamento que o Executivo tomou da sua própria agenda. “A gente fica num equilíbrio de forças muito disfuncional para o país.”

Por ora, no entanto, o economista afirma ter poucas esperanças de que o desfecho da eleição presidencial de outubro trará as reformas que ele entende como necessárias para o país, com o cenário polarizado que a disputa eleitoral aponta hoje. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: A Verde não tinha a visão pessimista para atividade neste ano que algumas casas chegaram a ter. O que vocês enxergavam?

Daniel Leichsenring: Há fatores estruturais e conjunturais. Parte desse crescimento mais forte que temos hoje é devido à melhora que a gente viu [de 2016 para cá]: as empresas reduziram muito o endividamento e houve reformas importantes, como a trabalhista e a criação da TLP [Taxa de Longo Prazo do BNDES]. Esses fatores são mais estruturais e, quando você pensa à frente, há motivos para acreditar que o crescimento pode ser um pouco maior – não muito, porque os indicadores de produtividade seguem ruins. Mas a rentabilidade do setor privado melhor, com custo de trabalho relativamente menor, é um ponto importante e que, provavelmente, vai sustentar uma taxa de investimento um pouco maior.

Valor: E os fatores conjunturais?

Leichsenring: O Brasil é extremamente beneficiado por um ciclo de commodities importantes – apesar da desgraça que é a guerra [na Ucrânia]. O que ajudou também, naturalmente, foi a reabertura da economia. Vários setores dos serviços permaneciam – e permanecem ainda – abaixo do nível pré-pandemia. E o mercado de trabalho teve uma recuperação surpreendentemente boa.

É tão despropositado dar um subsídio para gasolina e tirar dinheiro de saúde e educação”

Valor: O PIB do segundo trimestre pode ser forte como o do primeiro?

Leichsenring: Nunca estivemos tão pessimistas com o crescimento deste ano, mas ele também nos surpreendeu para cima. O primeiro trimestre foi bom, bem melhor do que as pessoas imaginavam dois meses atrás, e acho bem provável que o segundo trimestre tenha crescimento parecido, talvez um pouco abaixo. Mas, no fim das contas, coloca o carregamento estatístico para 2022 ao redor de 2%.

Valor: Mas e depois, na segunda metade do ano?

Leichsenring: Grande parte dos analistas espera uma desaceleração significativa, o que acho razoável, se você olhar a relação histórica entre aperto de juros, condições financeiras e a atividade. Estamos com um crescimento perto de 2% para o ano, o que significa dizer que o segundo semestre é meio zerado. Isso começa a ajudar no combate à inflação.

Valor: Como chegamos a esse quadro inflacionário?

Leichsenring: Os números de inflação, hoje, são todos muito ruins. Dois grandes fatores contribuíram de maneira decisiva. Um, óbvio, foram os preços das commodities. Mudou de maneira radical. Quando o preço das commodities subia, o câmbio, em geral, se apreciava, então, tinha certa acomodação. Só que, quando o BC baixou a Selic para 2%, o diferencial de juros foi um fator muito mais importante para o câmbio se desvalorizar – junto com toda a bagunça fiscal. O câmbio se desvalorizou ao mesmo tempo em que preços de commodities subiram. Isso foge muito da norma. Mais para frente, em 2022, conforme a taxa de juros começou a chegar em níveis bem mais altos, houve uma dinâmica de câmbio mais parecida com o esperado; ainda assim, vemos aumento do preço de commodities em reais.

Valor: E o segundo fator?

Leichsenring: O preço dos bens. Não é uma característica puramente brasileira, vemos toda a questão das cadeias de suprimentos, da covid na China, de restrições de oferta e demanda muito forte. O que era algo mais localizado lá atrás ganhou corpo e, como o Brasil tem mecanismos de indexação muito piores, começa a haver certa contaminação. O que a gente vê na inflação hoje é o auge desse processo de acúmulo de choques e dos mecanismos de indexação.

Valor: Vai melhorar?

Leichsenring: Mesmo com a apreciação do câmbio, que não foi pequena neste ano, os bens no atacado seguem com crescimento importante na margem, contra a expectativa de que se pudesse ver certa estabilização, tanto pela normalização das cadeias – tem algum progresso sobre isso – quanto pelo câmbio. É difícil contar com uma melhora muito grande no varejo muito em breve. Mas, na margem, a variação está sendo menor. Conforme a gente avança, contando com a desaceleração da economia, o varejo vai começar a ter mais dificuldade para vender, vai comprimir margem, demandar do atacado algum desconto. Aí segue o processo usual. O que a gente viu até agora foi todo mundo repassando o quanto acha necessário e o consumidor aguentando, porque contou com transferência de renda significativa, uma poupança gerada na pandemia. Mas acho que dá para esperar uma melhora à frente.

Valor: Isso vai exigir juro alto por quanto tempo?

Leichsenring: Por tanto tempo quanto for necessário. Nós já fomos tão surpreendidos, em magnitude tão grande, pelo processo inflacionário no Brasil que é muito difícil fazer um prognóstico de que as coisas vão melhorar muito rapidamente. Existe a possibilidade de que esses fatores temporários comecem a aliviar, claro, mas acho difícil contar com isso. É perseverar no ajuste monetário e esperar que surta o efeito da maneira mais tradicional, como se fosse um processo inflacionário típico. Lá na frente, se a inflação porventura cair mais rápido do que se imagina, aí poderemos contar com uma queda de juros.

Valor: Quando pode haver espaço para corte da Selic?

Leichsenring: Estamos com uma taxa de juros que já é indiscutivelmente contracionista. O Copom [Comitê de Política Monetária], muito provavelmente, sobe mais 0,50 ponto, para 13,25% na próxima reunião [hoje e amanhã]. O processo inflacionário é muito ruim, não há muito bom motivo para parar de elevar os juros agora, mas eu, se estivesse lá, estaria olhando com calma. O BC já mostrou claramente que gostaria de ter parado. Dado o processo inflacionário tomando corpo ainda, acho que ele vai deixar a porta aberta para uma “saideira” em agosto, talvez 0,25 ponto, terminando em 13,50% e ficando parado por um bom tempo. Ele vai observar de que maneira a economia reagirá ao aperto significativo da política monetária, dar tempo de o juro real [descontada a inflação] fazer efeito. Na eventualidade de daqui a seis meses, por exemplo, não haver garantia de convergência da inflação para a meta, ele pode muito bem voltar a subir juros, caso necessário. A princípio, não acho que é, mas é possível estender por mais tempo uma taxa alta. Infelizmente, vamos ficar acima da meta ainda em 2023. Em tese, temos ciclo de queda de juros no fim do ano que vem, para um pouco abaixo de 10%, começando mais para a segunda metade do ano, porque deverá haver uma desinflação importante.

Os números de inflação, hoje, são todos muito ruins. (…) Preços de commodities e de bens contribuíram de modo decisivo”

Valor: Como as medidas em debate no Congresso para cortar impostos mexem com esses cenários?

Leichsenring: Sem as medidas, a inflação caminhava para 9% neste ano e perto de 5% no ano que vem. Com as medidas, nossa projeção de inflação vai acabar sendo revisada para baixo em 2022 e para cima em 2023. Considerando só o PLP 18 [projeto de lei complementar que estabelece, entre outras coisas, um teto para o ICMS de alguns itens], a inflação poderia ter um impacto de 1,5 ponto percentual neste ano. Se o PLP for permanente, isso ficaria com a gente. A parte mais específica da União [corte de impostos sobre gasolina e etanol] daria algo como 1 ponto percentual, mas isso seria temporário – até que o Congresso torne permanente. São tantas as variáveis que é difícil ter convicção da magnitude e do tempo em que os projetos vão bater na inflação, mas vai afetar para baixo nesse segundo semestre.

Valor: Qualitativamente, como vocês têm avaliado essas saídas?

Leichsenring: Qualquer política cujo foco seja os próximos seis meses está errada na sua concepção. É chocante propor uma emenda para tratar de matéria constitucional para seis meses, que é o que a PEC dos Combustíveis, em tese, vai fazer [para compensar Estados que zerarem ICMS de certos itens]. Com o teto de gastos, a ideia era justamente forçar um debate sobre a qualidade do gasto e tentar fazer com que houvesse uma reavaliação no sentido de cortar aqueles que tiveram pouco resultado econômico e social e focar os que têm benefício maior. O que a gente viu, ao invés, é que as pessoas ficam mais preocupadas em buscar mecanismos para burlar o teto.

Valor: Como o sr. avalia a evolução dos gastos públicos?

Leichsenring: Para se ter uma ideia, se pegar o gasto público primário obrigatório feito em 2002, e trazer para o IPCA de hoje, foram R$ 590 bilhões. Quando teve o impeachment de Dilma Rousseff, esse gasto, em moeda constante, era de R$ 1,370 trilhão. A gente aumentou o gasto anual entre 2002 a 2016 em R$ 780 bilhões, já ajustado pela inflação. Isso significa que aumentou quase R$ 3.700 por pessoa por ano. Se tivesse pegado esse dinheiro e distribuído para cada indivíduo, independentemente de ser rico ou pobre, cada pessoa poderia receber, hoje, R$ 310 por mês. Se quisesse focar os 50% mais pobres, poderia dar R$ 600 por pessoa.

Valor: Quem foram os maiores beneficiários desses gastos?

Leichsenring: Foi para quem sempre foi o gasto público, servidores, pensionistas, aposentados, um pouco para saúde e educação. O ponto é que a gente acaba gastando um valor extraordinariamente alto, mas qual é o efeito sobre a diminuição da pobreza, a melhoria da educação? Infelizmente, [o Brasil] é um país que não aprende com os próprios erros. Já fizemos tudo isso no passado, deu errado de maneira fragorosa e estamos voltando agora. Essa maneira eleitoreira é muito chocante.

Valor: Esse tipo de corte de impostos não contrata um problema fiscal para os próximos anos?

Leichsenring: Já passamos por essa história várias vezes. Um dia esses preços [de commodities] caem, a base de arrecadação cai e, no fim das contas, vamos cavar um buraco ainda maior no futuro. O pior é que a gente já tem um problema fiscal hoje. A nossa estimativa de déficit público nominal [inclui gastos com juros] é de 7% do PIB neste ano e estamos cogitando cortar quase 2% em impostos. O problema fiscal já é chocante, aí faz uma PEC, começa a criar alternativas, bem no espírito da Nova Matriz Econômica… A gente vai triturando o que sobrou da instituição fiscal, do teto, da Lei de Responsabilidade Fiscal. Outro problema é quão errado é esse gasto para subsidiar combustível.

Valor: Por quê?

Leichsenring: Se você pegar PIS/Cofins sobre gasolina e etanol mais a zeragem de ICMS [sobre os mesmos combustíveis], dá algo como R$ 60 bilhões por ano de desoneração compartilhada entre União, Estados e municípios. Não é diesel, que tem frete e poderia baixar custo para as pessoas; não é GLP [gás de botijão], que as pessoas usam para cozinhar, que os mais pobres têm dificuldade para pagar. Pela Pnad de 2020, temos no Brasil cerca de 42 milhões de pessoas que vivem com menos de R$ 325 por mês per capita (R$ 10 por dia). É muita gente e essas pessoas não têm carro, elas são pobres de verdade. Você vai desonerar a gasolina em R$ 60 bilhões por ano e nenhum centavo disso vai ser destinado para os 20% mais pobres da população. Não tenho palavras para descrever esse tipo de alocação de imposto. Não seria melhor pegar esses R$ 60 bilhões e dar R$ 110 por mês para cada um desses 42 milhões?

Valor: Qual probabilidade atribuem de todas essas propostas para corte de impostos passarem?

Leichsenring: Está todo mundo colocando suas cartas na mesa para ver o que consegue aprovar. Alguma coisa sai, acho muito difícil o Congresso ir contra uma proposta dessa natureza a tão pouco tempo da eleição. Agora, essa queda de impostos vai gerar, no âmbito dos Estados e municípios, uma queda importante de dotação orçamentária, tem todas as vinculações. É tão despropositado dar um subsídio para gasolina e tirar dinheiro de saúde e educação Acho que vai ter reação consistente dos Estados. Estou atribuindo probabilidade grande de o PLP 18 passar, com alguma moderação. Eu julgaria que uma emenda constitucional tem probabilidade bem mais baixa; é ano eleitoral, tem recesso a partir de julho e depois ninguém volta para o Congresso até a eleição terminar. Pode ter algum esforço concentrado, como houve no passado, mas uma PEC dessa natureza ou tem de passar em um mês ou dificilmente passa. A PEC mais rápida de que me lembro foi a do “Orçamento de Guerra” na pandemia, que conseguiu ser aprovada em cerca de um mês. Mas uma tramitação rápida de PEC no Brasil é seis meses. Acho que o Congresso vai ser “criativo” no PLP para colocar alguma compensação que não precise mudar o teto.

Valor: Mas há algo que possa ser feito para lidar com essa inflação?

Leichsenring: Algo sempre pode ser feito. Mas uma das maiores críticas que eu tenho a essa administração é que ela abdicou de ter uma agenda própria, deixou o Congresso sozinho para trabalhar sua agenda. Isso é uma inovação muito grande para o sistema político brasileiro. No mundo inteiro, é normal o Executivo, eleito porque tem um projeto, se envolver na agenda, é parte fundamental para conseguir avançar em reformas. Mas, para espanto de todos, o que vimos foi um governo que se isentou do seu projeto. Achar um espaço, agora, em seis meses e não são nem seis, porque a legislação eleitoral proíbe, a partir de julho, a concessão de qualquer benefício. Por isso esse “senso de urgência”, porque você tem praticamente três semanas para fazer qualquer coisa. Buscar em três semanas uma alternativa não é factível, mas a gente teve três anos e meio. Eu esperava que tivesse o mínimo de compromisso do Executivo com a sua própria agenda. Aprovou algumas coisas boas, como o marco do saneamento, mas teve um distanciamento e uma alienação da própria agenda indescritível. Dada sua ausência, o que a gente vê é o Legislativo e o Judiciário ocupando um espaço do Executivo. A gente fica num equilíbrio de forças muito disfuncional para o país.

Valor: Para 2023, o cenário está ficando mais nublado, com menos crescimento e mais inflação?

Leichsenring: Temos 1% de crescimento em 2023. É mais a direção do que a magnitude. Tem muita incerteza. Acho que vamos ter uma desaceleração da atividade. Estamos vendo o mundo inteiro elevar juros, acho que em alguma hora isso vai ser positivo para o combate à inflação no Brasil. Mas estamos contratando desafios novos para o ano que vem também. Se, por um lado, a reeleição desse governo pode significar, no agregado, algum respeito maior pelo teto de gastos do que a oposição, por outro, a maneira como está terminando esse governo não deixa muita esperança de que o tratamento fiscal no futuro seja muito melhor. Por enquanto, há pouca esperança de que, de fato, a gente tenha o conjunto de reformas que melhorem os problemas do país.

Valor: Vocês acompanham informações e têm estudos sobre eleições e reeleições pelo mundo. Como eles podem ajudar a traçar cenários para o Brasil neste ano?

Leichsenring: Juntamos um banco de dados muito grande. Se você não soubesse absolutamente nada sobre o Brasil atual, só que tem um candidato à reeleição contra um outro candidato, você diria que tem uma probabilidade de 70% a 80% de o governo ser reeleito. Essa é a média no mundo. Curiosamente, Jair Bolsonaro tem métricas de avaliação de governo e aprovação que são piores do que a média daqueles 20% a 30% que não se reelegem. O que isso quer dizer? Que, se você tivesse que julgar só por essas métricas, a probabilidade de Bolsonaro ganhar, hoje, é baixa. As métricas de avaliação não dão muito ânimo à tese da reeleição. Talvez seja isso que esteja na cabeça da política tentando ir para um tudo ou nada.

Valor: Ainda há espaço para mudanças ou uma terceira via?

Leichsenring: Na medida em que o debate eleitoral caminhar – ainda vai começar o horário eleitoral -, acho que existe um espaço para o Bolsonaro melhorar a avaliação de governo dele, isso vai em linha com todas as reeleições que vimos no mundo, é extremamente raro que um candidato a reeleição não melhore a sua avaliação de governo ao longo do período eleitoral. Nesse contexto, tem espaço tanto para Bolsonaro melhorar quanto para Lula piorar sua avaliação em relação ao que há hoje. Tem pouco espaço para uma terceira via nesse sentido porque tem dois candidatos nesse ambiente de polarização e extremamente conhecidos, com imagem muito consolidada.

Link da publicação: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/06/14/desonerar-combustivel-e-alocacao-equivocada-de-recursos-avalia-verde.ghtml?utm_source=valorinveste&utm_medium=referral&utm_campaign=materia

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

CDPP