Artigos

Canário na mina

Folha

“Em um dia frio de março de 1942, três meses após o ataque de Pearl Harbor, o Presidente Franklin D. Roosevelt encontra-se na Casa Branca com Henry Arnold, comandante da força aérea americana.” Assim John Doerr, um reconhecido investidor em empresas nascentes —Google entre elas— inicia seu livro “Speed and Scale” (velocidade e escala), no qual analisa em detalhe e com grande clareza os variados aspectos da crise climática e delineia um plano objetivo para sua superação.

Toma como exemplo e inspiração o plano que FDR esboçou em um guardanapo de papel naquela reunião. Um plano com apenas três itens (manter quatro territórios ameaçados fora da Europa, atacar o Japão e liberar a França), que deu à liderança militar americana a clareza de que tanto necessitava.

O livro de Doerr tem vários pontos em comum e alguma complementaridade com a obra de Bill Gates, “Como evitar um desastre climático”.

Ambos os autores têm experiência com desenvolvimento de novos negócios e familiaridade com tecnologia, de um modo geral. Ambos analisam alternativas inovadoras para eliminar, ou reduzir drasticamente, as emissões de dióxido de carbono e outros gases de efeito estufa (CO2e), de uma forma sistemática e didática, discutindo as alternativas existentes, ou em desenvolvimento, para cada uma das principais atividades emissoras de CO2e, como geração de energia, transporte, alimentação, atividade industrial e uso da terra.

Bill Gates e John Doerr concordam também quanto à necessidade de zerar as emissões de CO2e até 2050 e acreditam que os esforços feitos na presente década serão decisivos para que a meta seja alcançável. Doerr utiliza como ferramenta principal, o conceito de OKR, Objectives and Key Results (objetivos e resultados chave), elencando ao longo do livro dez objetivos abrangentes e cinquenta e cinco resultados chave que apontam o caminho a seguir.

Gates, por sua vez, adota o conceito de “green premium” (prêmio verde), que corresponde à diferença de preço entre um produto obtido com emissão de CO2e e seu sucedâneo “limpo”. Ao longo do livro, analisa métodos para se reduzir o prêmio verde nas diversas atividades responsáveis pelo aquecimento global.

A leitura dos livros é enriquecedora, não apenas por permitir uma visão clara das causas e um dimensionamento adequado do problema do aquecimento global, mas também por mostrar de forma convincente a viabilidade tecnológica da sua superação. Embora em nenhum momento os autores deixem de enfatizar a dificuldade do desafio, termina-se a leitura com esperanças renovadas na capacidade do engenho humano de enfrentá-lo.

Mas temos pressa e, até o momento, praticamente não há avanços. Ao contrário, as emissões globais continuam a se elevar. Uma matéria recente do New York Times relata as ondas de calor na Índia em abril, quando a combinação entre calor e umidade chegou muito perto de produzir o fenômeno de “wet bulb” (bulbo úmido), incompatível com a vida humana. O jornalista descreve que “pássaros caiam mortos do céu”.

Uma pessoa mais sensível, a quem relatei a notícia, estabeleceu imediatamente a ligação dessa imagem com os canarinhos levados pelos mineiros às minas subterrâneas, que ao desfalecerem alertam os trabalhadores da existência de um vazamento de gás e da necessidade de abandonar a mina imediatamente. No nosso caso, é bom lembrar, a alternativa de abandonar o planeta não está disponível.

A urgência necessária ao enfrentamento do problema expõe, a meu ver, uma lacuna dos dois livros citados. Grande espaço é dedicado à descrição das inovações, seu alcance e suas limitações, mas pouco se fala dos requisitos para que essas tecnologias sejam desenvolvidas e efetivamente adotadas em escala global, fator imprescindível para o êxito da empreitada.

Se pensarmos no mundo como um dependente químico, onde a droga são os combustíveis fósseis e demais processos emissores de CO2e, podemos dizer que os autores prescrevem um tratamento adequado, mas não dizem como levar o paciente a segui-lo.

Como o problema demanda uma solução global, exige um estímulo também global. Esse estímulo seria um preço global para as emissões de CO2e. Os autores reconhecem essa necessidade, mas não exploram as propostas existentes, nem pressionam para sua adoção. Para Doerr este é apenas um dos 55 key results, o KR 7.3. Ainda assim, é pensado como algo interno a cada país, e não mundial: “Preço do Carbono. Estabelecer preços nacionais para gases de efeito estufa, em um mínimo de 55 dólares por tonelada, subindo 5% anualmente”.

Já Bill Gates, que na introdução revela pensar mais como engenheiro que como cientista político, afirma que “precificar as emissões é uma das coisas mais importantes que podemos fazer para eliminar os Prêmios Verdes”. Mas se rende ante as dificuldades políticas da empreitada e não explora as possibilidades: “Não pretendo prescrever nenhuma solução, mas o principal objetivo é assegurar que todos paguem o custo real de suas emissões.”

Em que pese a existência de propostas engenhosas para o estabelecimento de um preço mundial para as emissões de CO2e, claramente não há empenho político das principais nações do mundo para sua adoção.

Notável exceção é a Europa, que lidera os esforços não apenas em seu próprio território, mas também procura estimular a adoção de políticas restritivas às emissões nos demais países do mundo. O melhor exemplo disso é a aprovação do “Carbon Border Tax”, que tributará as exportações de produtos à Comunidade Europeia, segundo a pegada de carbono de cada um desses produtos, evitando assim que países que não adotam restrições às emissões tenham uma vantagem competitiva indevida.

Seria importante que Bill Gates e John Doerr, ilustres cidadãos americanos, manifestassem em seus livros uma maior indignação com o papel secundário, quando muito, que os EUA têm desempenhado nas discussões internacionais relativas ao aquecimento global.

Voltando ao parágrafo inicial do livro de Doerr, me ocorre que talvez o aspecto mais relevante da reunião que ele cita, não seja o plano de FDR escrito em guardanapo de papel, mas sim a frase inicial: “três meses após Pearl Harbor”.

Esperemos que não seja necessário um Pearl Harbor ambiental para que os EUA se lancem decididamente na guerra contra o aquecimento global.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2022/06/canario-na-mina.shtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Candido Bracher