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Estressando a política monetária

Excesso, em uma direção, não justifica excesso na direção oposta

Valor

Experiências traumáticas tendem a ter um peso muito importante no comportamento subsequente das pessoas e das instituições. Até a pandemia, o grande trauma recente, para os gestores de política econômica, havia sido a grande crise financeira de 2008, com suas ramificações europeias, que se estenderam até 2012. Essas crises de desalavancagem geraram pressões recessivas persistentes, que, por sua vez, requeriam estímulos amplos e de longa duração.

Não surpreende, portanto, que o choque da pandemia, que trouxe efeitos de demanda e oferta e que atingiu uma economia mundial com menos problemas de alavancagem excessiva, tenha sido enfrentado com maciças doses de estímulo. Riscos inflacionários foram minimizados pelas autoridades, diante do aumento da ociosidade e, também, de uma aparente, mas temporária, perda de sensibilidade da dinâmica inflacionária às variações do ritmo de atividade econômica e do estado do mercado de trabalho.

Temos, de novo de forma sincronizada, mas não coordenada, uma guinada na direção do aperto das políticas

Para ficar apenas no terreno monetário, entre março e setembro de 2020, houve 85 cortes de taxas de juros entre os bancos centrais que monitoramos, que levaram a postura de política monetária a patamares fortemente expansionistas. Além disso, o Fed, BCE, o Banco do Japão e Banco da Inglaterra, para ficar nos principais bancos centrais, adotaram medidas de expansão quantitativa.

Tivemos, em suma, uma onda de estímulos sincronizada, mas não coordenada. Sendo difícil internalizar plenamente a ação dos seus pares, além dos efeitos de estímulos fiscais que foram adotados na época, os bancos centrais foram muito bem-sucedidos em limitar os riscos de baixa para a atividade, mas ao custo da emergência de pressões inflacionárias.

Processos inflacionários, na prática, sempre começam a ser evidenciados por pressões localizadas, e vão se espalhando se as condições de demanda permitem. Não tem sido diferente em 2020-2022. Ao adotar a tese que as pressões eram eminentemente transitórias, derivadas de restrições de oferta temporárias, e retardar a mudança de postura de política monetária, os bancos centrais, notadamente nos EUA e Europa, correram o risco de que aumentos de preços inicialmente localizados se espalhassem, o que acabou ocorrendo.

Tendo começado nos mercados de matérias-primas, a inflação eventualmente começou a se espalhar para os preços de bens, cuja demanda aumentou durante a fase mais crítica da pandemia, e finalmente para serviços. Em particular, a demanda por bens, na economia americana, cresceu muito além do que prevalecia antes do choque, capturando parte dos gastos que normalmente seriam alocados para o consumo de serviços.

Considerando a média móvel trimestral, a inflação global, tanto cheia quanto núcleo (excluindo inflação e energia) atingiu um piso pós-pandemia de -0,2% (cerca de -2,4% anualizado) em maio de 2020 – a amostra inclui trinta economias relevantes, exceto os casos de inflação muito alta ou volátil, como Argentina, Turquia e Rússia. A inflação vem em alta desde então, atingindo o máximo no período recente em maio passado, 0,8% (ou 10,0% anualizado), que também é a última observação disponível.

Cabe registrar que o comportamento da inflação não tem refletido apenas o efeito da pandemia e das políticas de estímulo adotadas em 2020, mas, obviamente, também o impacto, mais recente, da guerra na Europa, as sanções derivadas do conflito, e o consequente desequilíbrio em mercados de commodities, em especial petróleo e derivados.

Esse choque de oferta foi o impulso que faltava para, por um lado, acelerar a inflação global, mas também, por outro, motivar os bancos centrais que ainda hesitavam a começar suas reações de política monetária. Se o mundo estava relaxando a política monetária em 2020, agora temos, de novo de forma praticamente sincronizada, mas não coordenada, uma guinada na direção do aperto das políticas. Desde janeiro, os bancos centrais implementaram 68 altas de juros, sendo 52 depois do início da guerra, em um processo que deve continuar nos próximos meses.

Os preços de matérias-primas, que ofereceram as primeiras evidências do tsunami inflacionário que viria depois, subiram muito no impacto da guerra/sanções, mas já mostram recuos importantes, desde os máximos observados no início de março: 23% no caso do petróleo (Brent), e 45% no caso do trigo. Os preços das commodities industriais, medidos pelo índice CRB Raw Industrials, que tendem a ser sintonizados com as perspectivas para a atividade econômica, já mostram queda no ano, a despeito da guerra.

Com o injusto benefício da visão retrospectiva, parece claro hoje que houve um excesso de estímulos, em escala global, desde o início da pandemia. Isso contribuiu para as pressões inflacionárias, incrementadas pela guerra europeia, com consequências sociais deletérias, que observamos hoje. Os bancos centrais vêm, corretamente, trabalhando para reduzir as pressões inflacionárias, mas, assim como em 2020, de forma não coordenada, o que implica riscos. Excesso, em uma direção, não justifica excesso na direção oposta.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/estressando-a-politica-monetaria.ghtml

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Sobre o autor

Mario Magalhães Carvalho Mesquita