Entrevistas

Naercio Menezes: ‘A desigualdade social vai aumentar para a geração covid’

Gama

O poder de compra do brasileiro está totalmente esmagado. Mesmo que os salários sejam os mesmos, não somos mais capazes de comprar as mesmas coisas que antes. O maior sofrimento para muitas famílias está no supermercado. A carne, o leite, o gás viraram desafios para boa parte dos brasileiros e a inflação, uma angústia que parecia tão datada, esquecida lá nos anos 1990, voltou a ser realidade.

Para o economista Naercio Menezes Filho, professor da Cátedra Ruth Cardoso no Insper e da FEA-USP, se a inflação continuar aumentando e o descontrole político não for contornado, podemos viver uma crise ainda pior. “Tem que ter um programa de transferência de renda com foco nas famílias com crianças para proteger a próxima geração, porque são gerações. É a geração covid, que foi bastante afetada”, afirma.

Menezes, que é diretor do Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância e membro da Academia Brasileira de Ciência, diz que essa “geração covid” deve sofrer mais desigualdade social do que as que a precederam. “Os efeitos sobre o aprendizado foram dramáticos, no desenvolvimento infantil também. (…) Muitos dos avanços dos últimos 20 anos foram perdidos e essa geração vai ter problemas no mercado de trabalho, vai ter aumento na criminalidade e da porcentagem de jovens ‘nem-nem’ (nem estuda, nem trabalha).”

Segundo ele, são urgentes medidas de proteção a essas crianças e jovens, programas coordenados entre governo federal, estados e municípios. No entanto, ele aponta, mas nada está sendo discutido no momento.

Com medidas “desesperadas” para manter o governo no poder – como a PEC dos Auxílios, que aumenta valores de programas sociais e cria benefícios ao custo de R$ 41,2 bilhões a poucos meses das eleições –, a economia deve ficar ainda mais prejudicada e a sociedade paga a conta no curto, médio e longo prazo, como numa bola de neve em que a inflação é um elemento fundamental: o cenário político desvaloriza o real, o que consequentemente aumenta a inflação, o que acaba aumentando a pobreza no país: quem estava no limiar, cai abaixo da linha da pobreza; muita gente fica sem dinheiro para comer, o que aumenta o número de brasileiros em situação de fome.

Na entrevista que você lê abaixo, Naercio Menezes Filho comenta o cenário político e econômico atual, fala sobre a relação entre problemas na educação e desigualdade social, e sobre como até o remédio para a alta dos preços pode ser amargo e penalizar os mais pobres.

  • Naercio Menezes Filho | Muito da inflação se deve a fatores externos. A pandemia, que desarticulou as cadeias produtivas aqui e em grandes exportadores; a guerra da Rússia com a Ucrânia, que provocou grandes sobressaltos nos preços dos combustíveis. O problema é que o processo inflacionário tende a ser persistente. Se nada for feito, ele começa a contaminar outros produtos de outros setores da economia aqui no Brasil mesmo. O que se deve fazer para controlar esse processo é aumentar a taxa de juros, o que o Banco Central está fazendo, para tentar equilibrar oferta e demanda. É um processo que acaba penalizando os mais pobres, mas não há muita alternativa.
  • G |Embora seja um cenário mundial, até que ponto essa inflação é nossa, considerando que estamos no topo dos rankings de inflação do mundo?
  • NMF | É preciso diferenciar o processo atual do passado, quando havia um processo hiperinflacionário e a inflação chegava a 50% ao mês. Estamos bem distante desse nível. Há fatores que provocam a desvalorização do câmbio, que têm sido muito forte aqui no Brasil. Além desse choque de preços que ocorre internacionalmente, existem esses fatores externos associados à instabilidade política, a incerteza com relação a programas de governo, que dá um adicional na inflação via desvalorização do câmbio. O real, se você pegar um período mais longo, foi uma das moedas que mais se desvalorizou no período, e isso contribui para a inflação. A maior parte desse choque é externo, internacional, mas nós temos nossos fatores internos, especialmente agora. Um exemplo é essa PEC do Desespero que está sendo implementada para tentar ganhar votos para o Bolsonaro, que já provocou desvalorização cambial e aumentou as expectativas de inflação.
  • G |Por que medidas como a PEC contribuem para a alta da inflação?
  • NMF | Essas medidas são muito ruins. Demoramos muito para construir um arcabouço fiscal consistente, evitando exatamente isso, esse tipo de gasto no ano de eleição. Não se tem notícia de que na transição do FHC para o Lula a equipe gastou desenfreadamente, ou mesmo durante os governos do PT, nem do Temer para o Bolsonaro. É uma coisa específica da conjuntura atual, do Congresso liderado pelo Centrão, com muito interesse em preservar o poder pelas emendas secretas. Voltamos para um círculo eleitoral em que os presidentes, e até governadores e prefeitos, podem fazer o que quiserem para serem eleitos. Você aumenta o gasto de tudo quanto é jeito para atrair o eleitor com medidas populistas e depois quem paga a conta é ou o próximo presidente ou ele mesmo no futuro. E aí tem que aumentar impostos. No caso do governo federal, segurar a inflação. É muito ruim a conjuntura política que se estabeleceu nesses últimos quatro anos, com o presidente sem muita força, e delegando para o Congresso, que age muitas vezes em interesse próprio. Isso permite essa tentativa desesperada de conseguir votos com a anuência do Congresso e até dos partidos da oposição, que têm uma responsabilidade muito grande, porque deveriam estar agindo contra a PEC, para preservar a institucionalidade, para controlar a inflação até o próximo ano. Mas os partidos estão com receio de serem taxados de contra o povo, e assim são coniventes com essa situação. Isso pode causar um dano muito grande ao Brasil.
  • G |A inflação é um índice com dois pesos e duas medidas. O que isso representa para a sociedade a longo prazo? Quando vamos dizer que a inflação é coisa do passado?
  • NMF | A inflação será coisa do passado quando ela atingir a meta de 3% ao ano. Antes disso, ela vai estar presente e o BC independente vai fazer tudo para atingi-la. Acho que vai demorar um pouco para chegar lá. Esse ano já não há esperança e, ano que vem, fica difícil com a PEC do Desespero, que vai desvalorizar o câmbio. Assim, as perspectivas de inflação para 2023 aumentam, a meta fica mais distante e o Banco Central vai ter que aumentar ainda mais os juros e vai provocar desaceleração econômica.
  • G |E as consequências para as áreas sociais? Para além do preço alto, como isso vai nos afetar como sociedade, na vida de cada um?
  • NMF | A inflação tem um efeito muito ruim, especialmente para as pessoas mais pobres, que não têm um reajuste que as acompanha. Se você já ganhava pouco, se você estava logo acima da linha de pobreza, você vai ser penalizado e cair na linha da pobreza extrema. Muita gente perdeu o emprego, os negócios fecharam, a economia está voltando ao normal, mas muita gente teve um choque e não se recuperou até agora. Muita gente perdeu parentes que sustentavam a família, algumas não recebiam o auxílio emergencial e a inflação é aquela cereja do bolo, piorando ainda mais a situação. Os preços dos produtos aumentaram muito e penalizam esse pessoal.
  • G |Dá para dizer então que a inflação aumenta a desigualdade e interfere nas 33 milhões de pessoas em situação de fome no país?
  • NMF | Sim. Se você for ver os dados históricos, quando houve o plano real em 1994, a desigualdade caiu. A renda média subiu 20%, principalmente a renda dos mais pobres. Houve uma diminuição grande da pobreza e da desigualdade nesse período. Por exemplo: a pobreza caiu de 42% para 31%. Lembrando que a pobreza era bem mais alta do que hoje em dia, que está na faixa de 15%, 16%. Mas mesmo assim, naquela época, caiu 10 pontos percentuais entre 93 e 95, e a pobreza extrema caiu cinco pontos percentuais, passando de 14% para 9%, com a redução da inflação. Novamente, foi um caso extremo que você tinha inflação de 40% ao mês e passou para 5% ao mês, e depois estabilizou para 5% ao ano. Mas mesmo em casos menos extremos, como a gente vive, como você não tem os mecanismos de correção monetária, de indexação, penaliza muito os mais pobres e é responsável pelo aumento da fome, porque as pessoas não têm mais dinheiro para comprar os bens de alimentação que elas tinham antes. Está tudo muito caro e elas não têm o que comer basicamente.
  • G |Para quem está nas grandes cidades, a gente vê isso na rua.
  • NMF | Exato. Muita gente na rua e é uma situação que piorou muito. Se você pensar historicamente, houve uma redução muito grande da pobreza, da pobreza extrema, com a estabilização da inflação e a criação de todos esses programas de transferência de renda. É importante notar isso, que antes da década de 90 não existia o SUS, não existia educação universalizada, não existia programa de transferência de renda, não existia aposentadorias. Tudo isso é uma criação desde a Constituição de 88. Então a situação melhorou muito alguns anos atrás, você já não via essa pobreza assim na rua, generalizada, e fome. A não ser casos específicos. Mas o grande choque foi a pandemia, que provocou essa queda bruta de negócios, e a renda do trabalho dos mais pobres caiu 40%, é uma enormidade. Dos 10%, as pessoas que viviam de bico pararam, acabou a renda. Mas também é importante notar que em 2020, o auxílio emergencial deu uma aliviada muito grande. Porque metade das famílias brasileiras recebia R$ 600 ou R$ 1,2 mil, que para os mais pobres é muito dinheiro. Foi isso que deu uma aliviada boa, a desigualdade caiu, a pobreza caiu. Mas em 2021, como houve a redução do auxílio, voltou. E a inflação, que provocou essa deterioração final.
  • G |Mas a administração desse auxílio foi errada? Deveria ter sido mantido mais alto ou era insustentável?
  • NMF | Foi mal implementado. Muita gente, que não foi tão afetada pela pandemia, não precisava ganhar e ganhou. Não é metade da população brasileira que está na pobreza, é bem menos que isso, e o valor de R$ 1,2 mil é elevado. Para manter o programa até o fim da pandemia, era mais adequado focar nas pessoas que precisaram e que perderam o emprego, e nas que já eram pobres e estavam sofrendo mais, com o valor de R$ 600. Mas naqueles níveis que a gente tinha, era impossível manter.
  • G |Uma pesquisa do FMI mostrou recentemente que a geração que ficou fora da escola na pandemia deve sofrer um empobrecimento no futuro. Com os preços em alta e o achatamento da renda das famílias, esses números de evasão e a previsão de empobrecimento podem aumentar?NMF | Foi um desastre. A pandemia teve um efeito enorme na educação, muitas crianças não tiveram nenhuma aula, nem à distância nem presencial durante 2020 e 2021. Em alguns estados isso atingiu metade das crianças; em outros mais bem organizados, cerca de 10% a 20%, então foi um impacto regional muito diferente e isso vai agravar desigualdades regionais. Os mais pobres foram os que mais sofreram por terem casas lotadas, sem espaço para estudar, sem acesso a internet para todos, com pais menos escolarizados com medo de perder o emprego, perder a vida; enquanto os mais ricos conseguiram levar, apesar dos problemas que também sofreram, de saúde mental das crianças e medo de ficar doente. A desigualdade vai aumentar para essa geração, não há dúvida, e os efeitos sobre o aprendizado foram dramáticos, no desenvolvimento infantil também.
  • G |O que tem que ser feito?
  • NMF | É muito importante ter políticas e não vemos debate sobre isso. É impressionante o descaso com essa geração, que vai sofrer por toda a vida, especialmente os mais pobres. Muitos dos avanços dos últimos 20 anos foram perdidos para essa geração, que vai ter uma desigualdade mais alta se nada for feito, vai ter problemas no mercado de trabalho, vai ter aumento na criminalidade e da porcentagem de jovens “nem-nem” [nem estuda, nem trabalha]. Tudo isso vai acontecer daqui a dez anos, e já tá anunciado, mas a gente não vê uma preocupação nacional, uma coordenação do governo federal com as redes. É importante ressaltar que não é só uma questão social: você está deixando pessoas que poderiam contribuir para o crescimento do país de fora, esse aumento de jovens nem-nem significa que mais pessoas vão ficar de fora do mercado de trabalho formal, do empreendedorismo. Poderiam ser líderes, podiam gerar empregos, poderiam empreender, poderiam fazer arte, esporte, e elas vão ficando desiludidas, desesperançosas. O país perde.
  • G |Como é que se quebra o ciclo da pobreza?
  • NMF | É preciso ter uma certa perspectiva também, porque a situação já foi muito pior. Mas se a inflação continuar aumentando, o descontrole político, a incerteza, até com relação à transição democrática, aí a situação pode piorar mais. E aí você tem que proteger as crianças, as famílias com crianças. É isso que eu defendo. Você tem que ter um programa de transferência de renda com foco nas famílias com crianças para proteger a próxima geração, porque são gerações. É a geração covid, que foi bastante afetada. Se a situação descambar, você protege as famílias com crianças para que elas possam se desenvolver, para depois aprender na escola, e assim por diante. Você tem que manter essa rede de proteção social funcionando. Essa tem que ser a prioridade.
  • G |Com auxílios, com programas, como seria?
  • NMF | Transferências de renda, um valor maior para as famílias com crianças, creche, ir para escola, e saúde, atenção básica para diminuir a mortalidade infantil. Tem a estratégia Saúde da Família, que é um dos melhores programas que existem. Tem que manter essa estrutura e focar muito nas crianças para tentar protegê-las dos efeitos mais nocivos.
  • G |O aumento de juros é o principal mecanismo para segurar inflação, mas penaliza as pessoas. Tem outro jeito ou é inescapável?
  • NMF | É inescapável. A inflação está piorando, e se você não tiver a taxa de juros num padrão adequado para fazer com que a inflação se estabilize, vai piorando a situação a cada mês. É só olhar para a Argentina, que perdeu o controle. O problema da inflação é que ela gera uma imprevisibilidade. Você não sabe quanto você vai conseguir comprar de comida no próximo mês, e tudo isso é terrível psicologicamente. Eu tenho um artigo que pesquisa e mostra que mães que deram à luz na hiperinflação, especialmente as que deram a luz no final do mês, quando acabou o dinheiro, tinham uma alta probabilidade de ter problemas de depressão pós-parto. E isso afetou a outra geração de filhos que nasceram naquela época, e esses filhos acabaram estudando menos, tiveram mais problemas sócio-emocionais por causa dessa imprevisibilidade. E novamente, era na época da hiperinflação, então era uma situação bem mais grave.
  • G |A inflação também tem um impacto mental forte?
  • NMF | Se você é uma mãe que tem que sustentar dois, três filhos e ganha menos do que o salário mínimo, os preços subindo, você não consegue mais comida no mercado, não consegue comprar o que você está acostumado, deve ser terrível. Os seus filhos em casa começando a sentir fome, isso tem um impacto muito grande na saúde mental.
  • G |Pensando na economia doméstica, as pessoas sabem que o salário, embora seja o mesmo numericamente, é menor?
  • NMF | Eles têm a noção, eles sentem. Inclusive é um dos fatores que explicam que a popularidade do presidente permanece parada, mesmo com o aumento das transferências de renda e programas, a inflação gera essa perda visível para as pessoas e elas ficam inconformadas.
  • G |Quanto tempo ainda podemos sofrer os efeitos da pandemia?
  • NMF | Muita gente morreu, inclusive morreu de outras causas, porque não tinha lugar nos hospitais, isso não volta mais. Agora em termos de negócios micro, muita gente vendeu o que tinha porque tinha que viver de alguma coisa antes de chegar o auxílio emergencial e agora não tem nada e tem que reconstruir esse capital. Demora muito tempo, porque a pessoa tem que comer, ela tem que ter alguma poupança, um crédito, para poder reconstruir o seu capital, mesmo que seja um carrinho de pipoca.

Link da publicação: https://gamarevista.uol.com.br/semana/cade-seu-dinheiro/economista-naercio-menezes-fala-como-a-inflacao-aumenta-a-desigualdade-social/

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

CDPP