Artigos Blog do CDPP

Como regular mercados de carbono no Brasil

Com a intensificação dos impactos das mudanças climáticas sobre a população mundial e a clareza, cada vez maior, sobre o potencial impacto devastador do fenômeno no futuro caso as emissões de gases de efeito estufa (GEE) não sejam drasticamente reduzidas, a busca por instrumentos que viabilizem uma efetiva e eficiente transição para uma economia carbono-neutra[1] se intensificou. Nesse contexto, os mercados de carbono se tornaram tema quente em discussões internacionais, por possibilitarem a redução de emissões ao menor custo para a sociedade, isto é, por proporcionar a mitigação custo-efetiva de emissões de GEE.

Mas o que são mercados de carbono?

Mercado de carbono é um termo ainda aplicado de forma ampla, podendo se referir a um rol de aspectos relacionados à atribuição de um valor monetário a ativos lastreados em emissões, reduções de emissões ou remoções de GEEs, com a consequente transação desses ativos. Primeiramente, é possível diferenciar no campo dos mercados de carbono os instrumentos que buscam precificar a externalidade negativa associada às emissões de GEE – isto é, onerar emissões -, daqueles mecanismos que buscam remunerar a redução de emissões ou remoção de GEEs da atmosfera.

No primeiro caso, são incluídos os chamados instrumentos de precificação de carbono (IPC), notavelmente os Sistemas de Comércio de Emissões (SCE) – comumente chamados de mercados regulados de carbono. No segundo, são classificados os mecanismos de crédito de carbono (crediting mechanisms, em inglês). No caso de um IPC, o regulador (normalmente governos) determina obrigações regulatórias atreladas às emissões de GEE. Já no caso dos mecanismos de créditos de carbono, agentes voluntariamente desenvolvem projetos que mitigam emissões de GEE e, a partir de um processo de certificação e validação, podem converter as reduções ou remoções de emissões verificadas em “créditos de carbono’. A demanda por tais créditos de carbono pode ser tanto de natureza voluntária – por exemplo, para compensações de uma empresa com compromisso voluntário de neutralizar emissões -, quanto de sistemas regulados que aceitem compensações via créditos de carbono. Desta maneira, se pode dizer que os sistemas são complementares.

A realidade é que todas as modalidades do que por vezes se denomina mercados de carbono de forma ampla têm se desenvolvido e presenciado grande crescimento nos últimos anos. Os SCEs, por exemplo, já cobrem mais de 16% das emissões globais de GEE, com destaque para o SCE europeu e o chinês. Na América Latina, o México já implementou seu SCE e a Colômbia caminha na mesma direção. Já nos mercados de créditos de carbono, também presenciamos grande aquecimento recentemente, particularmente em 2021, quando o mercado voluntário de créditos de carbono superou o valor de US$ 1 bilhão pela primeira vez na história. Ademais, as projeções atuais indicam que tais mercados devem continuar se expandindo nas próximas décadas, com papel cada vez mais central nas rotas de descarbonização de empresas e países no âmbito das metas do Acordo de Paris.

Tais perspectivas nos mercados de carbono representam uma grande oportunidade para o Brasil. No mercado de créditos de carbono, o país possui tanto um grande potencial de geração de créditos – sendo recorrentemente apontado entre os maiores potenciais vendedores a nível internacional –, quanto boa experiência com os mecanismos. Já na parte regulatória, IPCs estão entre as melhores práticas a nível internacional, em uma agenda que ganhou grande destaque nas negociações entre países. Sendo assim, a adoção de um instrumento do tipo poderia favorecer a agenda de integração internacional do país, contribuindo para a concretização de acordos comerciais e para a acessão do país à Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Além disso, poderia evitar ou amortecer barreiras comerciais baseadas em clima, que devem se tornar cada vez mais comuns no futuro, a exemplo do recentemente anunciado ajuste de fronteira baseado em carbono (CBAM) da União Europeia.

Nesse contexto, há alguns anos vêm se discutindo no país tanto a regulamentação e padronização dos projetos de créditos de carbono nacionais quanto o estabelecimento de uma regulação para a precificação das emissões de GEE domésticas. O processo envolveu estudos, análises técnicas e discussões envolvendo o governo, o congresso nacional, instituições multilaterais, do setor privado, do terceiro setor e especialistas no tema.

Após longas discussões na Câmara dos Deputados – e mais recentemente também no Senado Federal – sobre um Projeto de Lei para regular mercados de carbono no País, recentemente o governo brasileiro publicou o Decreto Nº 11.075/2022 – o qual chamou informalmente de decreto do mercado de carbono brasileiro. No artigo “O processo de estabelecimento de mercados de carbono no Brasil”, elaborado em parceria com o Centro de Debate de Políticas Públicas (CDPP), discuto o processo que levou à publicação de tal decreto, analiso seu conteúdo e discuto próximos passos.

O decreto, ancorado na Política Nacional sobre Mudança do Clima de 2009, possui alguns méritos e muitas limitações. Entre os méritos do decreto estão a busca por estabelecer trajetórias setoriais de redução de emissões de GEE compatíveis com a NDC e a meta de neutralidade climática do país – o que poderia contribuir para a transparência da estratégia de cumprimento dos compromissos assumidos internacionalmente pelo país – e a criação de um sistema de registro único para inventários, projetos, créditos de carbono e suas transações. Tal registro, aliado à maior padronização do processo de certificação e emissão de créditos de carbono nacionais, confere maior transparência a tais créditos, podendo gerar maior credibilidade e, consequentemente, liquidez e valor.

Entretanto, o decreto é muito vago, deixando diversos itens cruciais em aberto para posterior regulamentação, o que dificulta uma avaliação completa. Diversas questões surgem da falta de definições, que deverão ser endereçadas no futuro próximo e podem fortemente influenciar a efetividade em atingir os objetivos propostos. Além disso, a participação nos mecanismos parece ser facultativa e não há menção a consequências ao descumprimento de prazos e metas setoriais de redução de emissões, de modo que, mesmo com indefinições, é pouco provável que o decreto seja efetivo em implementar as trajetórias de mitigação a que se propõe. Adicionalmente, o proposto parece absolutamente inefetivo para endereçar políticas comerciais baseadas em clima, como o CBAM europeu.

Ademais, a própria forma de criação do marco regulatório, por decreto, gera pouca resiliência ao ciclo político e, com isso, uma insegurança jurídica que prejudicará a realização dos investimentos de longo-prazo que são necessários ao processo de descarbonização.

Sendo assim, é essencial que o decreto seja apenas um primeiro passo numa caminhada do país em direção às melhores práticas internacionais relativas a mercados de carbono, a ser seguido pela aprovação de um Projeto de Lei, que não só traria mais resiliência e segurança jurídica, como também possui maior legitimidade, por cumprir todo o rito de aprovação de um processo democrático.


[1] Isto é, em que nossas emissões e remoções de GEE da atmosfera se equilibrem.

Leia o artigo “O processo de estabelecimentos do mercado de carbono no Brasi” no link abaixo:

Guido Penido é consultor do Banco Mundial. Foi coordenador técnico do Partnership for Market Readiness – PMR Brasil, projeto sobre precificação de carbono coordenado pelo Ministério da Economia em parceria com o Banco Mundial.

Artigo da série Economia do Clima, sob a curadoria de Ricardo Gallo.

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Guido Penido