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Quando deixamos de entender o mundo

Folha

“Quando Deixamos de Entender o Mundo” é o título de um fascinante romance de não ficção do escritor chileno Benjamin Labatut.

Em cinco episódios independentes, em que personagens reais e fatos verídicos são enriquecidos com a imaginação do autor, são expostas as intrincadas ligações entre a criação científica, por um lado, e a beleza, a loucura e a guerra, por outro. Somos apresentados a cientistas que exploraram os limites do conhecimento em suas épocas, como Einstein, Schwarzschild, Schrödinger e Heisenberg, entre outros, e aprendemos como pode ser desestabilizadora a descoberta científica quando revela fatos que acentuam a nossa incapacidade de compreender o mundo.

Li o livro há alguns meses, mas nos últimos dias o seu título me voltou repetidas vezes à mente. Certamente não por eu me perguntar sobre o funcionamento dos buracos negros, ou buscar entender os princípios da mecânica quântica; não me aventuro a tanto. Minha incapacidade presente de compreender o mundo está ligada a fatos muito mais simples e observáveis a olho nu. Isso é o que mais incomoda.

Sinto-me como Chauncey Gardiner, o personagem interpretado pelo genial Peter Sellers no filme “Muito Além do Jardim”. Ele é uma pessoa limítrofe, que viveu em completa reclusão até a meia-idade, ocupando-se de cuidar do jardim e tendo na televisão seu único meio de contato com o mundo externo. Obrigado a confrontar a vida real, quando é expulso da casa pelos advogados do seu falecido patrão, vê-se diante de uma gangue de adolescentes em um subúrbio americano. Ameaçado com um canivete, ele saca do bolso o controle remoto da televisão e o aponta para o grupo, procurando mudar a cena.

Tento o mesmo, mas meu controle remoto tampouco funciona.

Acredito ser natural nas pessoas, seja por necessidade psíquica, seja por fundamentos reais, o desenvolvimento de uma concepção evolutiva do homem e da sociedade. A embasar essa crença, está desde a imagem conhecida e onipresente da “evolução”, mostrando as figuras que vão do macaco ao homem que caminha ereto até as “frisas do tempo’’, que aprendemos a fazer no primário (“fundamental”, para os mais jovens), em que a pré-história, a escravidão, a servidão feudal vão se seguindo, passando pelos descobrimentos, o Renascimento e a Revolução Industrial, até desaguarem nas democracias modernas dos nossos dias.

No nosso próprio tempo de vida, vimos distanciarem-se as sombras das grandes guerras do século passado, a chegada do homem à Lua, a integração crescente das mulheres e a conscientização em relação às minorias em geral e os progressos tecnológicos que facilitam a comunicação e a informação. É natural que acreditemos no progresso e em uma tendência à busca do entendimento, às soluções negociadas e ao equilíbrio democrático, ao menos no nosso mundo ocidental. Como essa crença nos convém, podemos até desprezar elementos que apontem em sentido contrário, considerando-os casos excepcionais, exceções que justificam a regra.

Mas ultimamente a exceção tem-se tornado regra. Somos parte de um mundo que assiste praticamente inerte às crescentes evidências das consequências trágicas do aquecimento global. Diante das previsões cada vez mais precisas e incontestadas da ciência, comportamo-nos como o sapo na panela, atribuindo ao outro a responsabilidade que é de todos. Como o entendimento global é muito complicado, fingimos que o problema não existe.

Nos EUA, a inacreditável invasão do Capitólio só é menos chocante que as previsões do provável retorno do seu fomentador nas próximas eleições presidenciais. Nas últimas semanas, três decisões da Suprema Corte anulando o direito ao abortoliberando o porte de armas em público e cerceando a agência ambiental americana dão a impressão de que o projetista reverteu o filme da história.

Nas Filipinas, como uma assombração de além-túmulo, volta o nome de Ferdinand Marcos, caricatura perfeita do ditador corrupto. Os jornais nos dão conta de que a eleição de seu filho foi amparada em uma série intensa de fake news, comprovando uma vez mais o princípio de Goebbels, de que uma mentira dita mil vezes torna-se verdade.

Na Europa —que, após a Segunda Guerra, ergueu-se para dar ao mundo os belos exemplos da queda do Muro de Berlim, a reunificação alemã e a consolidação da União Europeia, onde o respeito às diferenças de língua e cultura faz a força do bloco—, assistimos pasmos à volta da guerra de grandes proporções. Ao menos nesse caso, nos conforta que, com a perspectiva do ingresso da Suécia e da Finlândia na Otan e o convite à Ucrânia e a Moldova para integrar a UE, a aventura de Putin pareça repetir a lógica das tragédias gregas, como a de Édipo, quando a ânsia de escapar ao futuro temido acaba por precipitar o personagem no abismo do qual queria fugir. A Otan será mais forte após a guerra, e o futuro de Putin é incerto. Mas isso não trará de volta os milhares de vítimas desse confronto anacrônico.

Na América Latina, uma sequência de eleições polarizadas entre posições aparentemente inconciliáveis mostra a deterioração da democracia no subcontinente, em vez da consolidação que há alguns anos parecia assegurada. A fragilidade crescente dos partidos políticos e o efeito disfuncional das redes sociais tornam difícil a formação de maiorias que possam garantir a implementação de políticas sustentáveis que levem ao crescimento econômico e ao desenvolvimento social.

No nosso Brasil, temos diante de nós uma eleição presidencial na qual os dois candidatos que lideram as pesquisas são, para tomar por empréstimo a frase de Laurentino Gomes, “de um lado, um sujeito que namora a ditadura, com sua linguagem grosseira. De outro, uma esquerda com cheiro de naftalina”. Ainda há tempo para construir uma alternativa que represente os ideais de união e concórdia.

Entre todas, a imagem que mais dói projeta-se em minha mente repetidas vezes. No rio Itaquaí, cercados pela floresta amazônica, dois homens seguem em uma pequena lancha, pouco antes de serem emboscados e assassinados. Aos meus olhos, são defensores da floresta e de seus povos, mas ouço o responsável último pela segurança no país dizer com descaso que fazem uma “aventura não recomendável”. Não estou certo de querer entender este mundo.

Link: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2022/07/quando-deixamos-de-entender-o-mundo.shtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Candido Bracher