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Draghi vencido pelas forças do atraso

Passado o estupor, seguido de profunda tristeza diante dos impactos e consequências da queda do premier Mario Draghi na Itália, é hora de juntar os cacos e analisar como um governo de união nacional, com uma agenda impecável do ponto de vista do fortalecimento da democracia e da economia, com grande apoio popular e parlamentar foi derrubado por idiossincrasias oportunistas do seu antecessor, Giuseppe Conte. Mas não foi só Conte que derrubou Draghi, há mais coisa sob a superfície.

Uma primeira constatação que salta aos olhos é a enorme fragilidade de governos democráticos em tempos de populismo. Outra perplexidade é observar a perpetuação de fantasmas do passado atuando em momentos decisivos quando a Justiça não é independente das forças políticas: no movimento de demolição do governo, Berlusconi desempenhou papel central, evidenciando qual o tipo de interesses vem sendo contrariado pelas reformas de Draghi. Também contrariados estavam sendo os interesses russos, entretecidos nas máfias supranacionais há decênios, ao ter em Draghi um dos principais líderes mundiais a favor da Ucrânia, das sanções à Rússia e da emancipação energética da Europa.

Aqui vão algumas reflexões sobre este triste episódio, e sobre como vem se delineando o quadro para a eleição de 25 de setembro.

Draghi e o governo de união nacional

Em meio à aguda crise sanitária provocada pela Covid, em que a ausência de uma estratégia nacional para enfrentá-la atrasou a vacinação e levou o país a uma situação caótica, Draghi foi convidado pelo Presidente da República, Sergio Mattarella, para o cargo de premier[1] em fevereiro de 2021. Não filiado a nenhum partido político, sucedeu a Giuseppe Conte, que ficara à frente da coalizão entre os partidos de esquerda (Movimento 5 Stelle – M5S) e de direita (Lega) entre junho de 2018 e janeiro de 2021[2]. Apenas o partido de extrema direita, de Giorgia Meloni – Fratelli d’Italia – não participou da ampla coalizão.

Além do enorme apoio parlamentar, Draghi também contava com o apoio de 85% da população no momento da sua posse, tendo sido encarregado, pelo Presidente Mattarella, de cuidar de três urgências: a pandêmica, a econômica e a social, através de um governo high profile, não identificado com nenhum partido político em particular. E foi o que fez desde então, junto com um ministério composto por nomes indicados pelos principais partidos da base, além de outros indicados pelo próprio Draghi.

A fase aguda da pandemia foi enfrentada com investimentos na infraestrutura sanitária, ampla campanha nacional de vacinação e amparo financeiro a famílias e empresas, permitindo a retomada da economia italiana, que cresceu 6,6% no ano passado, superando seus vizinhos, com queda de 4,5 p.p. na dívida pública sobre o PIB.

Para enfrentar as urgências econômica e social, a Itália precisava exibir competência e disciplina para fazer jus aos generosos recursos oferecidos pelo Next Generation EU, fundo financiado, pela primeira vez, por dívida comum a todos os países membros. A própria situação política e econômica da Itália havia inspirado a criação do fundo, vencendo a resistência dos “frugais”[3], para evitar um Italexit. Tratava-se de salvar a Itália para salvar a União Europeia. Tratava-se, também, de a Itália aceitar a disciplina imposta pela União Europeia sobre gastar bem o dinheiro recebido.

Com €750 bilhões a serem distribuídos entre os países-membros para enfrentar a crise pandêmica, coube à Itália a maior fatia do bolo – mais de €200 bilhões, parte a fundo perdido, parte a juros baixos – desde que cumpridas as exigências de reformas e de critérios social e economicamente defensáveis para a aprovação dos investimentos pleiteados.

O mundo, e os italianos, aplaudiram a escolha de Draghi. Profundo conhecedor da economia (e das mazelas) italiana(s), com sólida formação acadêmica e a maior parte da vida profissional dedicada ao serviço público, reuniu uma equipe de técnicos de primeira grandeza, um verdadeiro dream team. Juntos produziram um plano ambicioso, com um volume de investimentos sem precedentes na história recente, e as principais reformas necessárias para modernizar e recuperar o dinamismo da economia italiana.

Nasceu, assim, o Plano Nacional de Recuperação e Resiliência (PNRR)[4], aprovado por grande maioria no Parlamento italiano, e pela União Europeia, em julho de 2021. Havia dinheiro e competência para que a estratégia tivesse sucesso, uma oportunidade única para uma grande virada.

As reformas e os investimentos

Com o propósito de sair de décadas de estagnação econômica (ver gráficos 1 e 2), foram definidos investimentos e reformas para melhorar as condições de crescimento de longo prazo e criar oportunidade para jovens e mulheres, além de reduzir a desigualdade entre o Norte e o Sul do país.

Gráfico 1 – PIB    

  Gráfico 2 – PTF

Dentre as principais medidas está uma ampla reforma da Justiça, e os investimentos necessários para tanto. Os afrouxamentos institucionais ocorridos após a reação do sistema político às investigações da operação Mani Pulite deixaram marcas profundas no ordenamento jurídico italiano, reforçando a impunidade a crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e correlatos, refletidos na piora contínua dos índices de Rule of Law do país (gráfico 3).

Gráfico 3 – Rule of Law – (World Bank)

Indispensável ao fortalecimento da democracia e do desenvolvimento econômico, o objetivo da reforma é tornar a Justiça justa e rápida, com redução em torno de 40% da duração dos processos, redesenhando a Justiça Penal, a Civil e a Lei de Falências, ao lado de investimentos na digitalização e recrutamento de pessoal. Essa é a base de todas as demais reformas e uma das principais condicionantes para a liberação dos recursos do fundo europeu. Já foram aprovadas no Parlamento (pendentes de algumas regulamentações) as reformas do Processo Penal, do Processo Civil, e a Lei de Falências, tendo chegado ao Senado a reforma da Justiça Tributária.

Ambiciosa, e também muito importante, é a reforma da administração pública, hoje lenta, cara e ineficiente, a partir de investimentos e mudanças visando melhorar a qualidade do capital humano, a simplificação de processos e a ampla digitalização, garantindo segurança e interoperatividade da máquina pública.

Também as leis que regem as licitações e concorrências públicas estão sendo reformadas, com o objetivo de promover eficiência, transparência e agilidade no setor, blindando-o contra a corrupção, tão frequente no setor. Em seu discurso no Senado no dia da decisão da sua saída, Draghi disse textualmente que “devemos manter as máfias longe do PNRR. É o melhor modo de honrar a memória de Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, e dos homens e mulheres das suas escoltas mortos brutalmente há 30 anos”[5].

Também o atual arcabouço tributário, tanto relativo às pessoas físicas como jurídicas, reconhecidamente confuso, pouco transparente, regressivo, levando à enorme sonegação e informalidade na economia, deve passar por reformas visando sua simplificação e racionalização. O objetivo é não aumentar os impostos dos cidadãos, e sim reduzir, a médio prazo, a carga que recai sobre a folha dos salários mais baixos e dar maior transparência e racionalização do IVA.  

Outro bloco de reformas necessário ao crescimento econômico gira em torno das regras de concorrência privada, visando a defesa dos consumidores e a remoção de obstáculos à abertura de mercados, totalmente fechados à concorrência, há décadas, como o dos serviços de taxis e o das concessões balneárias, feudos com privilégios cristalizados, e muito poderosos.

Há, também, reformas setoriais, onde o turismo é um dos alvos importantes, e grande ênfase aos investimentos que garantam a infraestrutura adequada para a mobilidade sustentável, a preservação do meio ambiente e a rápida transição para energia renovável, coisa que a guerra na Ucrânia acrescentou urgência. Engloba investimentos em educação, pesquisa, ensino técnico, creches para favorecer o aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho (hoje uma das mais baixas da Europa), dificultar o trabalho invisível etc. Na saúde, o objetivo é incentivar o tratamento precoce dos cidadãos, estruturando os cuidados primários, digitalizar prontuários e intensificar o uso de telemedicina. A agenda social visa reduzir a carga tributária dos salários mais baixos, modernizar e tornar eficazes os contratos coletivos de trabalho, deixando a questão do salário-mínimo para ser definido na UE.

Dentre os investimentos previstos no PNRR estão ferrovias, infraestrutura banda larga, creches e energia renovável. Até agora, todos os objetivos do PNRR estão de acordo com o apertado cronograma negociado com a UE, tendo permitido o recebimento de € 46 bilhões do fundo europeu, com desembolso de mais € 21 bilhões previsto para as próximas semanas.

Mesmo sem ser exaustiva, a lista acima indica que não foi por acaso que as reformas e investimentos previstos no PNRR tanto entusiasmaram investidores e organismos internacionais. Interesses arraigados seriam contrariados, mas poderiam ser contrabalançados pelo crescimento da economia decorrente dos generosos investimentos engatilhados e do alívio social que as medidas proporcionariam.

A guerra da Ucrânia

No meio do caminho, veio a invasão da Ucrânia pela Rússia, trazendo inflação e angústia para a população, habilmente utilizadas pelos populistas de plantão para galvanizar apoios dos perdedores com o fim da corrupção e demais mamatas presentes no cenário italiano.

Com o apoio do Parlamento, a Itália reagiu com firmeza desde o início da invasão russa na Ucrânia, sendo Draghi um dos mais vocais líderes a favor das sanções econômicas ao invasor. Ao mesmo tempo, tem se movido com grande rapidez na direção daquilo que ele definiu no seu discurso no Senado[6] como “inaceitável dependência da Rússia – fruto de decênios de escolhas míopes e perigosas”. Em poucos meses as importações de gás russo caíram de 40% para 25%, e o objetivo era zerar em um ano e meio. Estão sendo acelerados os pesados investimentos em energia renovável.

O apoio ao governo começou a dar sinais de fratura à esquerda e à direita. O M5S, que indicou Luigi Di Maio como ministro das Relação Exteriores no governo Draghi, sofreu a defecção de algumas dezenas de parlamentares há poucos meses em virtude da recusa do partido em apoiar o envio de armas italianas à Ucrânia. À direita, Salvini, presidente da Lega, cujo partido recebeu financiamento russo durante seus primeiros anos de existência, chegou a marcar uma viagem solo a Moscou, às expensas do Kremlin, para “ajudar as negociações” sem que o governo soubesse. Não ocorreu a viagem, mas o mal-estar permaneceu. Berlusconi, do Forza Italia, amigo pessoal de Putin de longa data[7], chegou a criticar o apoio do país à Ucrânia, voltou atrás, mas deu o bote quando viu Draghi enfraquecido.

Wikimedia Commons

Os motivos que provocaram a queda foram pueris, girando em torno de questões marginais[8] alegadas por Conte e seus seguidores do M5S para não votar um pacote de auxílio à população e empresas envolvendo mais de € 20 bilhões, quebrando o pacto de coalizão celebrado no início do governo. Apesar da reação internacional e da mobilização sem precedente da sociedade civil italiana em apoio à Draghi (cidadãos, associações, terceiro setor, escolas, universidades, empresários, esportistas), não foi possível manter o M5S dentro da coalizão. Contando, ainda, com folgada maioria nas duas casas, Draghi preferiu sair, prevendo futuros embates que mutilariam seu plano de governo de união nacional.

Eleições

Feito o estrago, começam a se delinear as forças que disputarão as eleições de 25 de setembro. Pesquisas após a definição da nova eleição (25 de setembro) mostram o partido de Meloni à frente, com 23,3% de intenções de votos, seguido de perto pelo Partido Democratico, de Letta, com 22,8%, ambos com crescimento de um ponto com relação aos dados anteriores à crise. Em seguida, e perdendo cerca de 1 ponto cada, estão os que apoiaram a queda do governo: a Lega, de Salvini, com 13,7%, o M5S, com 10,1%, e o Forza Italia, com 7,8%. O partido de Mateo Renzi, Italia Viva tem 2,7% de intenções de voto. É o mais curto período eleitoral que o país já teve, e coincide com a época de férias de verão, que costuma abranger o mês de agosto.

No momento, o que se vislumbra é uma disputa estridente liderada por Giorgia Meloni[9], na extrema direita. Admiradora de Viktor Orbàn, Marie Le Pen, Abascal (do Vox espanhol), e similares, assusta democratas do mundo todo. Está negociando apoio com Berlusconi e Salvini, ainda não está claro em torno de quais propostas. Talvez o tamanho do risco que ela representa ajude a aglutinar as demais forças políticas em torno de Letta, um político moderado de centro esquerda, que vai procurar resgatar parte do plano Draghi.

E o futuro?

Vimos acontecer na Itália, de maneira cristalina, o puzzle que tira o sono de todos os que se preocupam em encontrar saídas para países presos na armadilha da estagnação econômica. As receitas de reformas estruturais e políticas públicas, baseadas no que há de mais consolidado na teoria econômica e na história, são conhecidas, e Draghi acabou de nos dar uma aula sobre como concebê-las. Mas bateu no muro dos interesses contrariados e foi expulso do jogo.

Ele sabe, nós sabemos, que para um país crescer é preciso que suas instituições sejam desenhadas visando o bem-comum, o que significa que o dinheiro público precisa ser blindado contra o assalto de grupos de interesses. É preciso que a Justiça funcione de maneira eficiente, que os partidos representem os interesses dos cidadãos, que serviços públicos de qualidade sejam oferecidos à população etc., etc., etc. Como fazer isso se quem escreve as leis não representa o bem comum? Vamos nos conformar com ditaduras populistas que prometem soluções fáceis e ilusórias em troca de poder absoluto, como querem Giorgia Meloni, Putin, Orbàn e tantos mais?

Encontro a resposta em Bobbio, que nos diz que “… a solução de uma grave crise que ameaça a sobrevivência de um sistema político deve ser procurada, antes de tudo, na sociedade civil, na qual podem ser encontradas novas formas de legitimação e portanto novas áreas de consenso.”[10]

A sociedade civil é a guardiã natural das instituições democráticas. O trabalho é árduo, há muitos percalços, mas é a única maneira de preservamos nossa liberdade e garantirmos a prosperidade e integridade de um país.


[1] Formalmente, o cargo é de Presidente do Conselho de Ministros, com funções de Primeiro Ministro.

[2] Apoiaram o governo Conte I (entre junho de 2018 e setembro de 2019) o Movimento 5 Stelle, de Peppe Grillo e a Lega, de Matteo Salvini; no governo Conte II (entre setembro de 2019 e fevereiro de 2021) a Lega saiu da coalizão com o M5S, e entraram o Partito Democratico (PD), o Liberi e Uguali e a Italia Viva. Pouco depois de deixar o cargo de Premier Conte assumiu o comando do M5S no lugar de Peppe Grillo.

[3] “Frugais”, ou em tradução mais adequada, “avaros”, é o nome dado ao grupo de países formado pela Dinamarca, Holanda, Suécia e Áustria que costumeiramente se opunham a transferências fiscais a países com dívidas elevadas. França e Alemanha se uniram e venceram as resistências em nome da estabilidade da UE.

[4] Piano Nazionale di Ripresa e Resilienza.

[5] Discurso 20/07/22: https://www.repubblica.it/politica/2022/07/20/news/discorso_draghi_oggi_senato_crisi_di_governo-358465496/

Giovanni Falcone e Paolo Borsellino foram os responsáveis pela estratégia que permitiu, pela primeira vez, desvendar os mistérios e crimes (homicídios, tráfico de drogas, extorsão, associação mafiosa, etc) cometidos pela máfia siciliana, a Cosa Nostra, levados a julgamento em Palermo, no Maxiprocesso. Dos 460 réus, 344 foram condenados, sendo 19 com prisão perpétua, e penas de detenção totais de 2.660 anos, envolvendo chefes das mais importantes “famílias” pela primeira vez na história. O processo teve início em fevereiro de 1986 e término (sentenças na Corte de Cassazione) em janeiro de 1992. Falcone, sua mulher e parte da sua escolta foram mortos em um atentado em 23/05/92, e Borsellino em outro atentado, em 19/06/92. Os 30 anos dos assassinatos foram recentemente lembrados em toda a Itália.

[6] https://www.repubblica.it/politica/2022/07/20/news/discorso_draghi_oggi_senato_crisi_di_governo-358465496/.

[7] Conheceram-se em um encontro do G-8 em Genebra, em 2001. Desde então, têm mantido estreitas relações pessoais.

[8] Muito barulho foi feito em torno da discussão de nova concorrência de concessão dos balneários, há mais de 20 anos nas mãos das mesmas pessoas; taxistas em greves intermitentes para evitar o aumento do número de licenças; críticas à instalação de um incinerador de lixo em Roma (cujo lixo viaja para o Norte para ser incinerado); etc.

[9] No link a seguir está um vídeo, de pouco mais de um minuto, com parte de um discurso feito por Meloni na Espanha. É a melhor, e mais assustadora descrição das suas convicções: https://www.instagram.com/reel/Ce07Gp1lv42/?igshid=YmMyMTA2M2Y=

[10] Bobbio, Norberto, “Estado, Governo e Sociedade – Fragmentos de um dicionário político”, 23ª edição, 2020, p.46 – Paz e Terra, RJ-SP.

Artigo da série Corrupção e Desenvolvimento, sob curadoria de Cristina Pinotti.

As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Cristina Pinotti