Folha
Há poucas semanas, quase simultaneamente, jornais internacionais informavam sobre a decisão do governo congolês de licitar extensas áreas florestais para a exploração de petróleo e sobre a onda de calor na Europa, que registrava temperaturas recordes em vários países. Poucos dias depois, uma enchente fazia mais de 35 vítimas no estado de Kentucky, nos EUA.
O absurdo da situação fica evidente ante o conhecimento generalizado de que: 1) as ondas de calor e as inundações são um fenômeno crescente –nove entre os dez anos mais quentes da história ocorreram desde 2005– provocado pelo efeito estufa ocasionado pela emissão de dióxido de carbono e outros gases (CO2e) na atmosfera, e 2) a decisão do Congo impacta duplamente essas emissões: pela degradação florestal das áreas licitadas, que reduz o sequestro de CO2e, e pelas emissões a serem produzidas pelo petróleo extraído.
Tamanho desencontro talvez fosse compreensível, se europeus e americanos ignorassem o que ocorre no Congo, e vice-versa. Mas não só isto é impossível no mundo globalizado de hoje, como provavelmente empresas europeias e americanas estarão entre as participantes da licitação.
Questionados sobre a licitação, que alcançará até o Parque Nacional Virunga, o mais importante santuário de gorilas do mundo, autoridades do Congo afirmam que seu único objetivo é o de levantar recursos para apoiar projetos de redução de pobreza e ativar a economia. “Esta é a nossa prioridade. Salvar o planeta não é a nossa prioridade”.
Ante tal evidência da virtual inexistência de liderança e coordenação global para combater a crise climática, busquei orientação em um livro com o convidativo título “How the world really works”, escrito por Vaclav Smil, um reconhecido autor de livros científicos, que Bill Gates diz estar entre seus autores favoritos.
Como diria meu pai, “fui buscar lã e voltei tosquiado”.
Smil diz no início do livro e repete ao final que não é otimista nem pessimista; é um cientista. Afirma em seguida que não é possível compreender o funcionamento do mundo sem entender a importância fundamental da energia na atividade humana. Traz então uma profusão de dados numéricos, informações e comparações que demonstram de forma cabal nossa profunda dependência de energia.
Não apenas aquela necessária para as funções evidentes como a iluminação de nossas casas, aquecimento e refrigeração, transporte diário e viagens intercontinentais, mas principalmente a que está contida em virtualmente tudo que consumimos. Com fascinante precisão, aprendemos a quantidade de energia necessária para que cheguem à nossa mesa diversos alimentos, como por exemplo o tomate, que consome até 650 ml de diesel por kg.
O autor demonstra a importância dos “quatro pilares materiais da civilização moderna” –plástico, cimento, aço e amônia (para fertilizantes)– e explica como sua produção em larga escala é inviável sem a utilização de energia fóssil. Chama também a atenção para o fato de que fontes de energia renováveis, como eólica e solar, são intermitentes por natureza, requerendo grande capacidade de estocagem. É também o espaço necessário para seu armazenamento que torna inviável o uso de energias alternativas para a aviação e o transporte marítimo.
Todos esses elementos o levam a concluir que seremos dependentes de combustíveis fósseis por algumas décadas ainda: “Mesmo que multipliquemos por três ou quatro o ritmo atual de descarbonização, combustíveis fósseis ainda serão dominantes em 2050”. A essa conclusão, adiciona dois elementos agravantes: a dificuldade defazer previsões de longo prazo e a inexistência de exemplos passados de coordenação global para assumir custos e sacrifícios presentes em troca de benefícios no futuro distante.
O autor ironiza os otimistas que creem em sucedâneos tecnológicos milagrosos para a energia fóssil, como Chomski, bem como os que acreditam na nossa crescente capacidade de controlar o mundo, com Yuval Harari. Ridiculariza também os participantes das conferências climáticas, que já há 30 anos reúnem-se regularmente em localidades turísticas, despreocupados com a pegada de carbono de suas viagens e sem ter produzido um único acordo de redução de emissões efetivamente vinculativo.
Com todos esses elementos, o livro poderia ser lido como um importante alerta quanto à dificuldade do desafio à nossa frente e uma conclamação à ação; um encorajamento a exigir dos líderes globais maior coordenação e a aceitar custos e restrições, para evitar o aquecimento excessivo e suas graves consequências, que já se fazem sentir.
Mas não é essa a sensação que temos ao fim da leitura. Ao contrário, apesar de algumas frases de estímulo, o tom geral é de descrença em relação à possibilidade de reação coordenada e de conformismo com a incapacidade de planejar; “o futuro é uma repetição do passado – uma combinação de avanços admiráveis com (in)evitáveis reveses”.
Surpreende ainda que não haja no livro recomendações de políticas ou diretrizes para acelerar a redução de emissões. Ao mesmo tempo em que afirma não haver progresso possível na ausência de um acordo claro e irreversível entre as principais nações emissoras, coloca sérias dúvidas quanto à disposição dessas nações de imporem ônus a seus cidadãos (e eleitores) em troca de benefícios que, segundo ele, estão duas gerações à frente.
Será muito triste se vier a ser aplicável à questão ambiental o princípio que Max Planck, um dos pais da física quântica, cunhou para a ciência: “Uma nova verdade científica triunfa não por persuadir os que se opõem, fazendo-os ver a luz. Mas, antes, porque seus opositores acabam morrendo, e uma nova geração, já familiarizada com essa verdade, toma seu lugar”.
Apesar da enorme imprevisibilidade do futuro enfatizada por Smil, não há nenhuma dúvida de que protelar a ação, delegando-a às próximas gerações, causaria grande sofrimento. Em que pese toda a precisão de números contida no livro, continua válido o aforismo que diz ser melhor estar aproximadamente certo do que precisamente errado.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2022/08/como-o-mundo-realmente-funciona.shtml
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