Para Eduardo Giannetti, redução do número de crianças é oportunidade de melhorar educação no Brasil
Valor
Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em 12 de agosto, o economista e escritor Eduardo Giannetti se mostrou um otimista com o Brasil. Descreveu o momento atual como uma descida aos infernos – “democracia afrontada, a obscena desigualdade agravada, a floresta violentada” – mas se disse um crente no país e na iminência de um “parto temporão de cidadania”. E fez o salão se encher de aplausos quando, sem nomear seu alvo, previu: “O que está a apodrecer a vida não pode durar porque não é nada. Quando muito é estrume para o futuro. Vocês sabem do que estou falando”.
Giannetti também está otimista com a janela que se abre para uma melhora da educação no país. A queda na taxa de fecundidade está provocando uma mudança acentuada na pirâmide etária. E com a perspectiva de menos crianças no sistema educacional a tendência, diz ele, é que o país venha a ter mais folga de recursos para investir em ensino em tempo integral e em capacitação dos professores.
Ex-professor da Universidade de Cambridge, da Universidade de São Paulo e do Insper, o imortal, de 65 anos, tem se dedicado às palestras e aos livros. Trabalha atualmente em mais um obra. Ele recebeu a reportagem em seu apartamento no bairro da Vila Madalena, em São Paulo, para esta entrevista que faz parte da série sobre educação que o Valor vem publicando como forma de marcar o Bicentenário da Independência. A seguir alguns dos principais trechos:
Valor: Na história do Brasil independente, houve algum período em que a educação esteve no centro das prioridades?
Eduardo Giannetti: Veja o que o Ruy Barbosa escreveu em 1882, na comissão de instrução pública na Câmara dos Deputados [Giannetti pega uma folha papel com anotações e lê]: “A verdade é que o ensino público está à orla do limite possível a uma nação que se presume livre e civilizada. É que somos um povo de analfabetos e que a massa deles, se decresce, é numa proporção desesperadoramente lenta. É que a instrução acadêmica está infinitamente longe do nível científico desta era. É que a instrução secundária oferece ao ensino superior uma mocidade cada vez menos preparada para o receber”. Isso poderia ter sido escrito ontem, sem mudar uma palavra. É uma coisa estranha da vida brasileira porque a vocalização da prioridade da educação nos acompanha desde José Bonifácio, mas não se traduz em realidade.
Valor: A elite intelectual cobrava que a educação fosse tratada com a devida ênfase?
Giannetti: Num plano muito abstrato e muito intelectual. Mas não havia a contrapartida de políticas públicas, de compromisso da sociedade em relação à educação e à formação humana. As campanhas eleitorais mostram isso também. Durante as campanhas, o tema educação aflora com muita força sempre. Passa a campanha e volta o que sempre foi.
A vocalização da prioridade da educação nos acompanha desde José Bonifácio, mas não se traduz em realidade”
Valor: O Brasil teve avanços nos anos 90 e anos 2000 com a universalização da matrícula no ensino fundamental, a ampliação na oferta de vagas no ensino superior
Giannetti: Isso tudo aconteceu “ontem” e foi parcial. Primeiro ponto histórico: os Estados Unidos universalizaram o acesso ao ensino fundamental no final do século 19. O Brasil universalizou com um século de atraso. E foi uma universalização nominal, não uma universalização real. Porque estamos formando alunos do ensino fundamental sem que eles adquiram as competências, as habilidades e os conhecimentos correspondentes a esse grau acadêmico. São credenciais sem lastro. Muito do que aparece nas estatísticas brasileiras, incluindo a universalização do ensino fundamental, não tem realidade. Ilusão achar que o Brasil universalizou o acesso ao ensino fundamental. A gente, como sociedade, precisa ter uma garantia de que quem completa o ensino fundamental adquiriu, de fato, aquilo que se espera de alguém que terminou essa fase.
Valor: Levando em conta essa defasagem educacional, podemos antever como o Brasil será daqui a alguns anos – em termos de produtividade, inovação, crescimento -, quando esses alunos estarão no mercado de trabalho?
Giannetti: Uma das características da formação de capital humano é que é um processo inexoravelmente lento. Não é como construir um aeroporto, uma usina. É coisa de geração e essa é uma das razões pelas quais a educação não prevalece nas políticas públicas. Eu fiquei impressionado com um número que apareceu num artigo do [economista] Naercio Menezes no Valor: temos 20 milhões de jovens entre 18 e 24 anos; 6 milhões não completaram o ensino médio e 4 milhões completaram, mas não têm emprego. Nem estudam nem têm emprego. Ou seja, 10 milhões dos nossos jovens que estariam no apogeu da sua capacidade produtiva laboral estão excluídos da contribuição à criação de valor social e a sua própria vida futura.
Valor: O que produziu esse contingente de jovens?
Giannetti: A gente nunca pode esquecer uma coisa que é pouco discutida no Brasil: grande parte do nosso problema de formação de capital humano decorre de uma dinâmica populacional descontrolada que nós vivemos da Segunda Guerra Mundial até o início do século XXI.
Valor: Por que descontrolada?
Giannetti: Éramos 50 milhões de habitantes no início dos anos 50 e a população brasileira triplicou em 45 anos. Passamos dos 150 milhões em 1994. O crescimento da base da pirâmide etária no Brasil foi de uma ordem explosiva e a sociedade não se preparou para atender às demandas por educação, saúde e habitação dessa base. Do Descobrimento até 1950, passamos de cerca de 5 milhões para 50 milhões. A população no segundo reinado de Dom Pedro II era de 10 milhões de habitantes. O país que vive esse aumento [100 milhões em meio século] vai ter um problemaço de formação de capital humano, ainda mais se não se der conta de que terá de fazer um esforço muito além do que seria o normal para poder capacitar as crianças e os jovens que estão nascendo e crescendo para que tenham uma vida humana e produtiva adequada às necessidades do mundo contemporâneo.
Uma vida que não foi dotada de certas capacidades cognitivas e socioemocionais fica muito estreita”
Valor: Mas o país está agora envelhecendo.
Giannetti: É a outra questão na demografia que é muito importante. Além de triplicar a população em 45 anos, o Brasil viveu uma das mais aceleradas quedas na taxa de fecundidade do planeta na história humana. O número médio de filhos por mulher no Brasil passou de 3 para 2 em 19 anos. Na Europa esse mesmo movimento demorou 60 anos. Então, além de ter explodido a população em meio século, o país entrou numa redução da taxa de fecundidade provavelmente sem paralelo. Isso gera uma dinâmica populacional muito curiosa porque aquela base de crianças e jovens, com o passar do tempo, vai subindo e hoje está mais ou menos no meio do caminho. Então, no primeiro momento, há uma pirâmide com uma base muito larga. No segundo momento, que é o que nós estamos, a bolha populacional está subindo e atingindo a metade da pirâmide. Ao mesmo tempo começa a estreitar porque tem menos criança nascendo. Então em vez de uma pirâmide etária o país passa a ter um barril [um quadro etário no formado de um barril]. E vamos caminhar nas próximas décadas do barril para o cogumelo [um número menor de jovens e adultos na base e um número elevado de idosos no topo] porque haverá pouca gente nascendo. Inclusive, o número já é menor do que a taxa de reposição. Nós já estamos com menos de dois filhos em média e a taxa de reposição é 2,1 para manter a população estável. Por que a população ainda cresce? Porque o contingente de jovens em idade de reprodução aumentou muito e mesmo com o número médio para mulher abaixo da taxa de reposição a população cresce. Mas isso não vai durar muito tempo. Daqui a pouco vai chegar em “steady state”, como dizem os economistas.
Valor: Quais os reflexos dessas mudanças na pirâmide etária?
Giannetti: Tem duas coisas importantes da passagem do “barril” para o “cogumelo”. A primeira é produtividade. Se nós não melhorarmos muito a produtividade do trabalho no Brasil não vai ter como financiar o bem-estar material e a dignidade e o topo do cogumelo, que são os idosos – aquela bolha que entrou e está subindo e que será uma proporção imensa. Então esse é um capítulo para se discutir: como aumentar a produtividade para que quando chegar esse desenho do cogumelo haja criação de riqueza para o topo do cogumelo.
Valor: E qual deve ser o reflexo para a educação?
Giannetti: Há outra coisa que é ótima para a educação: com menos crianças entrando na população, mesmo que o país não aumente o investimento per capita, naturalmente dá para fazer um ensino em tempo integral de alta qualidade com um número muito menor de crianças entrando na escola. Já existe uma queda de matrícula no ensino municipal e no ensino estadual, reflexo dessa dinâmica populacional. Isso é uma excelente notícia para quem se preocupa com formação de capital humano. Você vai poder atender e qualificar muito mais do que naquele período do boom populacional em que era preciso ampliar quantitativamente só para acolher e matricular todo mundo.
Valor: Voltando à questão da necessidade de melhora na produtividade: essa melhora passa necessariamente por uma melhora na formação educacional?
Giannetti: Eu diria que esse é um componente. São três coisas fundamentais: formação de capital humano, formação de capital físico e eficiência alocativa. Você pode ter um país com excepcional capital humano, com excepcional estoque de capital físico e ser muito pouco produtivo porque os recursos não estão direcionados para onde eles são mais rentáveis. Um país aberto, um país que aloca trabalho e capital para produzir aquilo que o mundo mais valoriza e vende para o mundo, será muito mais eficiente, produtivo do que um país que é uma autarquia e produz apenas para abastecer o mercado local independentemente de sua potencialidade e produtividade.
Valor: Como o Brasil está nessas três áreas?
Giannetti: A gente tem problemas muito salientes nessas três áreas. Houve uma piora da alocação produtiva no Brasil que foi dramática durante o governo Dilma Rousseff [2011 a 2016]. O uso do BNDES para criação de [empresas] campeãs nacionais, para a recriação da indústria naval, grandes obras não terminadas. Isso é o desastre da eficiência alocativa. Quanto ao capital humano, esse é um problema civilizatório brasileiro desde sempre e não é um problema de um ou outro governo nem mesmo de regime político. A gente teve de tudo: Estado Novo, redemocratização, ditadura, Nova República. É verdade que houve alguns avanços, mas a questão educacional nunca virou o centro prioritário de uma política pública no Brasil.
Valor: Se o país nunca deu a devida ênfase à formação educacional, deu ênfase a grandes obras.
Giannetti: Curiosamente em relação ao capital físico nós tivemos isso. O governo Juscelino Kubitschek e a ditadura militar tornaram a formação de capital físico, a urbanização, a industrialização, construção de estradas, e infraestrutura em algo extremamente central na definição de políticas públicas. Mas não houve nada remotamente parecido em relação ao capital humano. Eu sonho com o surgimento de uma liderança política para o capital humano que esteja à frente de um movimento parecido com o que Juscelino fez quando levou o capital físico para o centro da imaginação brasileira. A imaginação brasileira ficou tomada pela promessa de modernidade: a nova capital, a indústria automobilística, a indústria se espalhando, o que foi muito ineficiente. Porque se não tiver uma contrapartida de capital humano não se sustenta. Capital físico sem uma contrapartida de inovação, de qualificação, de criação de tecnologia não adianta.
Valor: O que é crucial para que o Brasil consiga fazer mais avanços na educação?
Giannetti: Primeiro, tempo integral. Não apenas no ensino médio [etapa em que vários Estados estão avançando na adoção do ensino de 7 a 9 horas por dia]. O segundo ponto também é muito importante: algum tipo de resgate do lastro das credenciais acadêmicas. Eu gostaria muito que a sociedade brasileira conferisse a quem se forma no ensino médio uma credencial de valor correspondente. É uma informação politicamente indesejada porque vai expor a falácia da universalização. Eu defendo muito que se crie algum tipo de exame ao final e que se estabeleça se, de fato, o processo educacional entregou alunos com o grau genuinamente conquistado.
Valor: Em sua história independente, o Brasil teve “heróis” nacionais com uma atuação marcada na área da educação?
Giannetti: A palavra não é herói, mas alguns brasileiros obsessivamente, em seus trabalhos, insistiram que se não fizéssemos o que era necessário na formação de capital humano tudo mais seria frágil: democracia frágil, mercado frágil. Sem capital humano não se avança, inclusive na dimensão da realização humana. Uma vida humana que não foi dotada de certas capacidades cognitivas e socioemocionais, por não ter sido devidamente formada, fica muito estreita. Os horizontes dela são muito reduzidos. Quanto aos nomes, há grandes como Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira, Eugênio Gudin. Eugênio Gudin, que era o representante do modelo agrário-exportador, segundo a caricatura da história, tem passagens maravilhosas sobre o papel do capital humano e a formação de recursos humanos do desenvolvimento econômico. [Giannetti volta a recorrer à folha com anotações] Olhe o que o Eugênio Gudin fala: “A vanguarda do progresso pertence aos povos que cuidaram da educação do caráter em plano não inferior ao da educação na inteligência”. Ética e socioemocional. Isso é de 1936. Tem outra frase bacana dele, de 1959. Em pleno desenvolvimentismo de JK, ele era voz dissonante da euforia desenvolvimentista. “O problema do desenvolvimento econômico tem sido geralmente encarado no Brasil sob o prisma do curto prazo do imediatismo. Isto é, da execução de determinados melhoramentos materiais de resultados tangíveis em um período governamental. Se há, entretanto, problema que exige o planejamento de longo prazo com expectativa de resultados seguros, mas só gradativamente evidenciáveis, este é o da formação de gente, isto é, de uma população sadia, ativa e capaz. É a qualidade da população que constitui o elemento decisivo do desenvolvimento.” Os militares tiveram mesmo viés juscelinista: programa nuclear, Transamazônica, indústria de base. Tem que ter, mas se não houver uma correspondente na formação do capital humano esse capital físico definha.
Valor: Quando ganhou destaque no pensamento econômico a formação educacional para a economia?
Giannetti: Um dos autores economistas que eu mais estudei na vida foi o grande pioneiro na incorporação do capital humano na teoria econômica. Os economistas clássicos do século XVIII e do século XIX olhavam muito para a acumulação do capital físico. Só no fim do século XIX, na Segunda Revolução Industrial, quando a ciência passa a alimentar a inovação tecnológica e quando é necessário ter laboratórios, pesquisa, inovação, quando entra a eletricidade, quando entra a indústria química. Só aí é que os economistas começaram a, de fato, se dar conta de que há um componente na formação de capital que é intangível. Esse componente é o capital humano. Esse economista é o Alfred Marshall. Ele escreveu entre outras coisas: “o mais valioso entre todos os capitais é aquele investido em seres humanos”. Isso não é uma coisa humanitária, ele não diz isso como caridade. É uma questão estritamente econômica. E isso acontece, não por acaso no fim do século XIX, quando a dinâmica da liderança tecnológica, industrial, de comércio internacional passa a depender de formação de capital humano. E o país que lidera muito esse processo é a Alemanha, que integrou muito bem conhecimento, inovação tecnológica e indústria. Depois a teoria do capital humano passa a adquirir uma importância grande, mas que, na minha opinião, é reducionista porque é calcada apenas na quantificação do rendimento auferido por anos adicionais de educação. O Marshall tem uma dimensão de formação humana que não é apenas cognitiva, é socioemocional e ética também, que para mim é muito mais completa e diz muito mais em relação às carências e aos déficits que temos no Brasil.
Valor: A análise Marshall do fim do século XIX continua tendo relevância no início do século XXI?
Giannetti: Foi elevada à terceira potência. Se isso já era realidade na Segunda Revolução Industrial, agora, com as novas tecnologias, com a produção de conhecimento numa escada potencializada, formação de capital humano é muito mais relevante do que era na época dele.
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