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Como evitar a banalização das mortes violentas?

O Brasil convive há três décadas com uma endemia que ceifa anualmente milhares de vidas, sobretudo de jovens: as mortes violentas. Muitas das soluções propostas focam na atuação de uma ou duas instituições, como polícias e câmaras legislativas, mas há avanços científicos que norteiam caminhos possíveis e necessários para lidar com a problemática de forma integrada e mais efetiva. 

Pesquisas científicas sustentam, dentre outras estratégias, que é fundamental dissuadir pessoas a se engajarem em atividades criminais e que, respeitando o devido processo legal, a celeridade, a alta probabilidade e a efetividade da punição importam para aumentar o efeito dissuasório. Diante do cenário conservador atual, o discurso da punição costuma ser voltado apenas para o recrudescimento das leis, mas estudos científicos que analisam dados de reformas legais e mudanças de aparato policial e investigativo indicam que as pessoas tendem a responder muito mais à probabilidade de punição do que ao tamanho da pena. 

Levantamento do Instituto Sou da Paz divulgado em 2021 mostra que a maioria dos casos de homicídio no país (66%) não são sequer esclarecidos,  ou seja, não chegam às fases processuais para que sejam julgados e aplicadas as leis cabíveis. Sem contar que há uma grande disparidade de desempenho nos estados no país. Em locais como o Mato Grosso do Sul, esse número atinge a marca de 89% de casos sem apresentação de denúncia ao poder judiciário.  Essas evidências nos levam a perguntar: qual a chance  de um caso de homicídio doloso percorrer todo trâmite processual e  os criminosos serem identificados, julgados  e punidos  no Rio de Janeiro?  

Para responder a essa pergunta, o Centro de Pesquisas do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (CENPE/MPRJ) realizou em 2020 o cruzamento inédito das bases da Polícia Civil (PCERJ), do Ministério Público (MPRJ) e do Tribunal de Justiça (TJRJ). O estudo revela um cenário preocupante. A pesquisa acompanhou os 3,9 mil casos de homicídios dolosos registrados no estado em 2015 e verificou que, pelo menos, 9 em cada 10 não haviam sido julgados pelo Tribunal de Júri até dezembro 2019. Dois gargalos críticos são destacados: o baixo percentual de finalizações dos casos ainda na fase investigativa, de responsabilidade conjunta da Polícia Civil e do Ministério Público; e os longos tempos processuais associados às decisões judiciais em primeira instância. 

Até dezembro de 2019 e levando em conta os casos sem informação, no mínimo 60% dos registros de homicídio de 2015 estavam em andamento no MPRJ e, dentre os que tiveram algum tipo de finalização, apenas 15% foram denunciados. A denúncia é oferecida quando há indícios suficientes de autoria ou participação e de materialidade para formalizar um pedido de condenação dos investigados; caso contrário, o inquérito policial segue em andamento ou é arquivado. Do total de casos, 20% foram arquivados por não preencherem os requisitos de denúncia. Os anos iniciais são cruciais para o resultado do processo investigativo, pois a maioria das denúncias ocorrem em até 100 dias após o fato e se tornam especialmente raras após dois anos. Já os arquivamentos seguem tendência oposta, crescem com o passar do tempo.  

Seguindo o fluxo de justiça, saber se esses processos foram julgados não é trivial. Como não há integração entre as bases institucionais da PCERJ, MPRJ e TRJRJ, não foi possível verificar o status de parte das denúncias no Judiciário[1]. Em resumo, ao considerar os casos com em que foi possível fazer o cruzamento, dos 3,9 mil casos de homicídios registrados em 2015, menos de 4% receberam sentença pelo Júri após quase cinco anos.  

Esses números mostram o tamanho do desafio que temos pela frente, mas há muito o que pode ser feito com um olhar mais científico e embasado em dados. O primeiro passo é considerar as mortes violentas como um problema público, ou seja, um problema que exige articulação para combatê-lo. Parte da sociedade é indiferente a essas mortes sob o discurso de que a maioria das vítimas seriam criminosas ou pessoas que se colocam em situação de risco, como usuários de drogas. Esse julgamento social precoce pode ser evidenciado pela discrepância da atenção pública dedicada às vítimas de tipos distintos de mortes violentas intencionais — homicídio doloso, latrocínio e mortes por intervenção de agentes do Estado. Cada categoria tem um tratamento penal distinto, mas se referem ao mesmo fenômeno social: ser assassinado. Um caso de latrocínio (roubo seguido de morte), por exemplo, recebe grande atenção da mídia e consternação da sociedade, embora represente, em geral, menos de 3% das mortes violentas do estado do Rio de Janeiro. Alguns operadores de segurança afirmam que esse é o crime que importa, sob uma justificativa implícita de que é contra um “cidadão do bem”. Por outro lado, as mortes por intervenção policial costumam ser menosprezadas sob a hipótese de que as vítimas seriam culpadas e, portanto, mereciam morrer. Se a proteção da vida de fato importa, as políticas públicas deveriam se concentrar em reduzir as mortes violentas como um todo.  

Focar a atenção pública em mortes violentas, além de ser crucial para levar Justiça à população marginalizada, contribui para o aumento da eficiência do sistema de justiça criminal.  O Ministério Público recebe anualmente cerca de 150 mil Inquéritos Policiais de gravidades diversas, definir prioridades, etapa basilar de qualquer modelo de gestão, é imperativo em um sistema que finaliza apenas uma parcela residual dos crimes ocorridos. No entanto, definir critérios claros de priorização ainda encontra resistência entre profissionais de Direito e, na ausência de uma definição institucional explícita, existe um incentivo tácito de privilegiar os casos de fácil finalização ou de maior repercussão. Além disso, a literatura criminológica nos ensina que homicídios muitas vezes são praticados como método de resolução de disputas e de estabelecimento de direitos de propriedade de mercados ilegais. Assim, identificar e punir homicidas é uma forma de chegar, por exemplo, em grupos milicianos, grandes esquemas de contravenção e traficantes de armas. O caso da investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco ilustra bem esse ponto.  

O aspecto central da investigação de mortes violentas intencionais para a solução de outros crimes torna ainda mais urgente que seja uma prioridade dos gestores públicos entender suas dinâmicas, buscar solucioná-las e preveni-las. Nesse sentido, uma série de ações com alto potencial de impacto podem ser realizadas. 

Para aumentar o componente dissuasório, é crucial que os autores de homicídios entendam que têm uma alta probabilidade de ser punidos. Nesse sentido, importa mais a capacidade média de punição do que punir crimes de maior repercussão. No que concerne à atuação das polícias, porta de entrada do sistema de justiça, a concentração de recursos em locais de alta incidência tende a ter alto potencial dissuasório, visto que na cidade do Rio de Janeiro metade dos homicídios ocorrem em menos 2% dos segmentos de ruas. Além disso, é  fundamental investir em perícia e em instrumentos de identificação de autores. A construção de bases de dados de DNA, por exemplo, tem impacto na dissuasão de criminosos identificados ao aumentar a probabilidade de identificação de autores e reduzir a reincidência no ano seguinte ao registro do DNA em até 43%. 

A lógica do sistema de justiça ainda é fundamentada em analisar caso a caso. A digitalização dos inquéritos físicos é uma iniciativa urgente para reduzir os tempos de tramitação de inquéritos e dar respostas mais ágeis. Só será possível dar conta do volume quando começarmos a explorar padrões e conexões, de forma que a investigação de um caso tenha o potencial de desvendar uma série de outros.  

Nesse contexto, discutir formas integradas de agir diante de casos concretos é muito mais efetivo do que atuar em frentes difusas.  As mortes violentas devem ser monitoradas de forma proativa a partir de dados estruturados, analisando casos recentes, discutindo suas possíveis causas e linhas de investigação. Representa também uma maneira tangível de promover coordenação entre instituições tão diversas quanto Ministério Público, Judiciário, Defensoria Pública, Polícias e Gestores públicos — que atuam, muitas vezes, com prioridades incompatíveis, mesmo tendo atribuições interdependentes ou relacionadas.  

A violência pode ser comparada a um problema social complexo que exige estratégias de priorização, prevenção e múltiplos tratamentos. Assim como esperamos que os remédios e vacinas que tomamos sejam resultado de um processo científico rigoroso de teste e avaliação, devemos e podemos cobrar a mesma postura em relação ao Sistema de Segurança Pública e Justiça Criminal. Sem isso, continuaremos sendo uma sociedade marcada pela banalização da morte. 

[1]Até dezembro de 2019, o estudo identificou 331 casos com informação, desse total 235 casos receberam sentença de pronúncia pelo juízo sendo 137 julgados pelo Tribunal do Júri, que proferiu 105 sentenças condenatórias. Foram consideradas sentenças condenatórias aquelas julgadas como procedentes ou parcialmente procedentes

Joana Monteiro é economista e coordenadora do Centro de Ciência Aplicada a Segurança da FGV. 

Julia Guerra é economista e gerente-executiva do Centro de Ciência Aplicada à Segurança Pública da FGV. 

Maria Eduarda Couto é socióloga. 

Afonso Borges  é estatístico.

Artigo da série Segurança Pública – Mitos e Fatos, sob curadoria de Marcos Lederman.

As opiniões aqui expressas são dos autores e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos associados. 

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Afonso Borges