Folha
Há dois meses o Congresso dos EUA aprovou o “Inflation Reduction Act“, considerado por muitos a legislação relativa à questão climática mais importante da história americana. Para analisar o significado da medida, convém situarmos o problema.
O aquecimento é decorrente do que vários economistas consideram “a maior falha de mercado a que o mundo já assistiu”. Outros ainda a chamam de “a mãe de todas as externalidades” —”externalidades” são os custos, ou benefícios, impostos a terceiros por uma determinada atividade.
No caso, a externalidade negativa é o aquecimento decorrente da emissão de gases de efeito estufa (GEE) por queima de combustíveis fósseis e outros processos, e a falha do mercado consiste no fato de que jamais se tenha cobrado preço algum por essa emissão. Como consequência, nunca houve estímulo para o controle dessas emissões, que cresceram sem barreiras até os nossos dias.
Mas ao longo dos últimos 30 anos a ciência reuniu evidências de que as emissões de GEE são a causa do aquecimento global, e hoje nenhum agente de boa-fé contesta a necessidade de sua redução. Há consenso entre a comunidade científica e a maior parte das nações de que é necessário se reduzirem as emissões a zero —o que se tornou conhecido como “net zero”— até 2050, para evitar um aquecimento superior a 1,5ºC ou 2ºC sobre os níveis da era pré-industrial. Acima desse ponto as consequências climáticas, sob a forma de elevação dos oceanos, perda de biodiversidade e desequilíbrios ambientais diversos, tornam-se graves e irreversíveis.
Estima-se que historicamente (até 2017) os Estados Unidos sejam responsáveis por 25% de todo o GEE já emitido, seguidos pelos países da União Europeia, com 22%, China, com 13%, Japão, 4%, e Índia, 3%. O Brasil aparece com apenas 0,9%. Esses números se alteram bastante quando examinamos as emissões correntes: hoje os maiores emissores são a China com 28%, os EUA, 14%, a UE, 10%, e a Índia, 5%. O Brasil emite cerca de 3,5% do total, sendo que quase metade desse valor é decorrente de desmatamento.
Cito os dados acima porque é natural pensarmos em corrigir “a maior falha de mercado” passando a cobrar pelas emissões de GEE, agora que seu efeito deletério é conhecido. Haveria mesmo o desejo de cobrar retroativamente por todas as emissões já havidas, uma vez que uns poucos utilizaram um recurso que é de todos (a capacidade da atmosfera de abrigar GEE), sem pagar nada por isso. Mas logo alguém lembraria que nenhuma lei pode ter efeito retroativo e se abandonaria essa pretensão.
Seria lógico e justo, porém, estabelecer a partir de agora um sistema global de cobrança que onerasse mais aos maiores emissores, sem perder de vista as condições sociais de cada país. Há boas propostas nesse sentido, mas, como se pode imaginar, encontram enormes dificuldades em obter apoio das principais nações do planeta; justamente aquelas que teriam mais a pagar. Apesar de o tema ser recorrente nos foros globais como a COP, não há ainda progressos a serem relatados nessa frente.
Restam então as iniciativas isoladas. Quanto a essas, há quatro formas teóricas e não mutuamente excludentes de promover a redução de emissões através de políticas públicas: 1) taxar, ou de outra forma colocar um preço, nas emissões de GEE; 2) forçar a redução de emissões através de medidas de comando e controle; 3) fechar progressivamente unidades de extração e refino de combustíveis fósseis; e 4) subsidiar com recursos públicos o desenvolvimento de tecnologias alternativas.
A União Europeia tem liderado as iniciativas com ênfase nas duas primeiras frentes. Seu sistema de “Cap and Trade” estabelece tetos de emissões por empresas, que são declinantes ao longo do tempo. Aquelas que conseguem ficar abaixo do teto acumulam créditos que podem ser vendidos às que desejam, ou necessitam, excedê-lo, formando-se assim um preço por tonelada emitida, que equivale a uma taxa. Além disso, através do Carbon Border Tax, a UE taxa as importações segundo seu “conteúdo de carbono”.
O IRA, recém-aprovado nos EUA, baseia-se quase que exclusivamente em subsídios e incentivos. Não há nenhuma oneração de atividades emissoras, ou estabelecimento de limites de emissão. Os US$ 369 bilhões a serem investidos em dez anos destinam-se principalmente a subsidiar a compra de equipamentos baseados em energia limpa —como carros elétricos— e pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias.
Apesar de o montante corresponder a apenas 4% do orçamento militar americano, há expectativas de que os subsídios permitam, por exemplo, a produção competitiva de hidrogênio verde, a partir do qual se poderão produzir combustíveis sustentáveis para o transporte aéreo e naval, assim como para a produção de cimento e aço.
A ideia subjacente, expressa por Bill Gates em entrevista recente, é a de que os EUA são o único país com poder de inovação suficiente para fazer frente ao desafio tecnológico, no exíguo tempo de que se dispõe. Poder que lhe é assegurado por suas universidades, centros de pesquisa, capacidade empreendedora e força de atração dos melhores talentos disponíveis no mundo.
Assim, em dez anos, os EUA esperam não apenas ter reduzido em 40% suas emissões como estarem aptos a exportar sua tecnologia verde, contribuindo para que o mundo alcance o objetivo do “net zero” através da substituição da queima de combustíveis fósseis. Tudo isso sem que tenha sido necessário um acordo global que implique a oneração de suas emissões presentes, muito menos das passadas, que foram decisivas para alçar o país à posição de liderança na economia mundial.
A estratégia faz lembrar a Inglaterra do final do século 18, época em que Adam Smith publicou “A Riqueza das Nações”, enfatizando entre muitas outras ideias importantes a superioridade do trabalho livre sobre o trabalho escravo. O país —nação mais poderosa do mundo, que até então ocupara o segundo lugar no tráfico de escravizados, atrás apenas de Portugal— passou a adotar uma postura abertamente antiescravagista, que foi decisiva para o fortalecimento e a aceleração do movimento abolicionista. Também o foi para criar nas colônias emancipadas mercados consumidores para os produtos industrializados que produzia.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2022/10/deja-vu.shtml
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