Ensino superior público faz muita diferença para os negros, que ganham em média 2,5 vezes mais do que os que só concluíram o ensino médio público
Valor
Dotar a maioria da nossa população com potencial para contribuir com ideias e trabalho qualificado para melhorar a produtividade é condição necessária para que tenhamos crescimento econômico com justiça social. Para isto, precisamos que nossos jovens tenham habilidade cognitivas, socioemocionais, saúde mental e conhecimento adequados. O ensino superior é ciclo final de desenvolvimento destas habilidades, e o que traz o maior prêmio salarial no mercado de trabalho.
A democracia possibilitou o surgimento de muitas políticas públicas voltadas para as minorias, como as políticas de cotas, que aumentaram a presença de jovens pobres e negros nas universidades públicas. Será que estes avanços estão em risco, dependendo dos resultados das eleições?
Cotas têm um grande potencial para aumentar o salário e a empregabilidade dos jovens negros
O Brasil sempre teve uma visão errada sobre educação. Predominava no país a ideia de que bastava ter uma elite esclarecida e uma massa treinada de trabalhadores para que o país crescesse de forma sustentada. Segundo esta visão, a elite educada comandaria o crescimento que geraria empregos para todos os trabalhadores e, portanto, não havia necessidade de educar a população em larga escala. Assim, apenas 2% da população adulta tinha ensino superior em 1970, o ano em que o Brasil foi tricampeão mundial.
O Brasil cometeu dois erros históricos com os descendentes dos escravos. O primeiro foi não ter permitido que eles aprendessem a ler e escrever nas escolas públicas. As crianças negras que entravam na escola repetiam de ano em massa, porque não tinham desenvolvido as habilidades socioemocionais para aprender no mesmo ritmo das crianças brancas, pois seus pais ou avós foram escravos. Manter o nível de exigência elevado para os descendentes de escravos foi o nosso primeiro erro histórico, só corrigido com as políticas de progressão continuadas criadas nos anos 1980.
O segundo erro foi não oferecer oportunidades educacionais para os negros quando eles vieram da área rural para as grandes cidades em meados do século XX. Esta migração é responsável por grande parte do crescimento acelerado que ocorreu nos anos 60 e 70 no Brasil, pois eles deixaram de trabalhar na agricultura de subsistência para ir trabalhar no comércio, serviços e indústria nas grandes cidades. Essas atividades, mesmo sendo pouco produtivas, eram mais produtivas que a agricultura de subsistência. Quando esta migração acabou, a produtividade estagnou e até hoje cresce muito pouco.
As coisas começaram a mudar com a Constituição de 1988. O campo democrático conseguiu colocar na Constituição as aposentadorias rurais, a criação do SUS e as mudanças no financiamento educacional. Em seguida, veio a expansão do ensino superior, com as reformas que flexibilizaram a criação de novos cursos privados nos anos 1990, ainda sem foco nos mais pobres.
Nos anos 2000, as matrículas nas faculdades privadas continuaram a crescer, mas a rede pública também se expandiu. Desde então, os gastos com ensino superior público dobraram, assim como o número de alunos e professores. Este aumento de pessoal é plenamente justificado do ponto de vista econômico, uma vez que o retorno econômico do ensino superior público é altíssimo no Brasil e milhares de novos alunos estão sendo formados nas novas faculdades públicas criadas desde então.
Mas, o acesso ao ensino superior público no Brasil sempre foi restrito e desigual, destinado para as pessoas brancas com renda elevada. Em 1992, por exemplo, somente 1,4% dos negros em idade para cursar o ensino superior estava na faculdade. Assim, os mais pobres pagavam impostos para que os mais ricos pudessem frequentar o sistema de educação superior público gratuitamente, uma tremenda injustiça. A criação do sistema de cotas no início dos anos 2010 permitiu grande diversificação do público que frequenta o ensino superior, fazendo com que as injustiças diminuíssem. Assim, a porcentagem de jovens negros que frequentam o ensino superior aumentou de 1,2% em 1992 para 16% em 2020.
Mas será que os negros com ensino superior estão ganhando o mesmo que os brancos no mercado de trabalho? A figura mostra que os brancos que fizeram ensino superior no sistema público ganham em média R$ 6 mil por mês, ao passo que os negros ganham quase R$ 4 mil. Esta diferença persiste mesmo entre os que se formaram na mesma carreira e reflete a discriminação que existe no mercado de trabalho brasileiro e que se repete na sociedade como um todo.
Mas a figura mostra também que o ensino superior público faz muita diferença para os negros, que ganham em média 2,5 vezes mais do que os que apenas concluíram o ensino médio público. E esta razão tem se mantido constante nos últimos anos. Assim, as cotas têm um grande potencial para aumentar o salário e a empregabilidade dos jovens negros. Políticas para reduzir a discriminação salarial no mercado de trabalho são necessárias para reduzir o restante da diferença de salários entre brancos e negros com ensino superior.
Em suma, a democracia fez com que a sociedade brasileira finalmente se voltasse para os mais pobres e para as minorias, depois de uma história de esquecimento. Jovens negros com ensino superior conseguem melhores empregos, sofrem menos homicídios e podem contribuir para o crescimento econômico. Precisamos decidir se queremos uma sociedade com menos desigualdade, menos mortes, mais democracia e crescimento inclusivo ou um outro tipo de sociedade, mais desigual, com muito mais mortes e com oportunidades concentradas somente nas elites. É isso que está em jogo no segundo turno das eleições.
Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/democracia-e-justica-social.ghtml
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