Folha
“É uma voz de advertência —adverti-los é o único serviço que um alemão como eu pode prestar a vocês hoje… quer dizer: confirmar os seus próprios maus pressentimentos; assegurar-lhes que esses pressentimentos são verdadeiros, justificados —e essa certeza tem que ser dada a vocês; pois só despertando em vocês o sentimento de que estão percorrendo um caminho terrivelmente errado manteremos a esperança de que talvez ainda possam abandoná-lo.”
Assim, a partir do exílio nos EUA, Thomas Mann se dirigia de própria voz aos alemães, em língua alemã, pelas ondas de rádio da BBC em março de 1941, quando a Inglaterra estava sozinha na guerra e a Alemanha ainda parecia imbatível.
Entre outubro de 1940 e maio de 1945, em 58 transmissões, o autor exibe uma clarividência extraordinária ao prever e descrever de forma dura e inclemente o terrível destino a que Hitler conduziria o povo alemão.
Os discursos, que estão reunidos no livro “Ouvintes Alemães”, possivelmente não sejam o melhor exemplo do talento literário de Thomas Mann, mas são sem dúvida a mais enfática expressão do seu caráter.
Sua advertência, contudo, não foi ouvida. Em seu discurso após o fim da guerra, ele lamenta que a Alemanha não tenha conseguido “se libertar sozinha, antes, enquanto ainda havia tempo, ou mesmo mais tarde, ainda no último minuto… em vez de o fim do hitlerismo significar ao mesmo tempo a (sua) completa ruína”.
O país, no entanto, se reconstruiu e pode cumprir a expectativa final de Thomas Mann: “Foi alemão em outro tempo, e pode voltar a sê-lo, o poder de obter respeito e admiração através da colaboração humana, do espírito livre”.
Advertências tão precisas são raras. Os oráculos sempre foram mestres em conferir um sentido dúbio às suas vidências, para que pudessem abarcar diferentes desenlaces. Isso sem mencionar as previsões que são simplesmente erradas. Em seu fascinante podcast “Agora, agora e mais agora”, o escritor Rui Tavares, com seu agradável sotaque português, define a Idade Média como “cerca de mil anos em que as pessoas acreditavam que o fim do mundo estaria para breve”. Durante mil anos, pois, as previsões apocalípticas se mostraram falhas e com o passar do tempo foram caindo em desuso, convencendo um número cada vez menor de crentes.
Em tempos recentes, contudo, voltamos a nos defrontar com advertências que, se não são apocalípticas, são graves o suficiente para causar grande inquietação. E isso se deve não apenas à severidade do cenário projetado mas ao fato de este não se basear em análises subjetivas, ou alegados poderes sobrenaturais, mas sim apoiar-se em modelos matemáticos e científicos, amparados por dados concretos. Refiro-me ao aquecimento global.
Naturalmente, isso não garante precisão às projeções que ainda apresentam razoável dispersão quanto à intensidade, ao prazo e à distribuição geográfica dos fenômenos previstos. Mas é inegável que a ideia vai se tornando mais universalmente aceita, especialmente —mas não apenas— pela comunidade científica, entre outras razões por estar sendo corroborada por um número crescente de eventos climáticos severos.
Infelizmente, credibilidade é condição necessária, mas não suficiente, para que uma advertência, por mais grave que seja, leve à ação. Outra condição importante é o custo de agir, que podemos decompor em vários fatores, entre eles: a iminência, ou não, do evento previsto, o grau de sacrifício necessário para evitá-lo, os eventuais riscos envolvidos na ação (que no caso da Alemanha de Hitler, por exemplo, eram óbvios) e, não menos importante, a possibilidade de acomodar-se, deixando aos outros a responsabilidade pela resolução do problema. É um comportamento frequente nos homens agir apenas quando o custo da inação supera o custo da ação.
No caso do aquecimento global, temos que:
- os eventos mais graves previstos se situam algumas décadas à frente;
- os custos associados à substituição de combustíveis fósseis e outras mudanças de hábitos requeridas para a redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE) são percebidos como muito elevados;
- os riscos para a popularidade dos políticos de países desenvolvidos (os maiores emissores), por implementarem medidas restritivas que impliquem um custo adicional ao consumo de combustíveis fósseis, são reais e significativos. Um manifestante “colete amarelo” em Paris colocou a posição de boa parte do eleitorado de maneira clara: “Vocês se preocupam com o fim do mundo, enquanto nós estamos preocupados com o fim do mês”; e, finalmente:
- sempre é possível acreditar-se que através da tecnologia todos os problemas serão resolvidos, ou que alguma outra solução surgirá antes que a situação se agrave demais.
A composição desses fatores inibe as medidas para a redução global das emissões de GEE e justifica a frase dramática do secretário-geral da ONU, António Guterres, na abertura da COP27: “Estamos numa estrada para o inferno climático com o pé ainda no acelerador”.
Esse pano de fundo realça ainda mais a importância e o acerto do discurso do nosso presidente eleito, na mesma reunião no Egito. Lula foi enfático ao comprometer-se com as duas principais linhas de ação esperadas do Brasil: a proteção da Amazônia e a cobrança dos compromissos dos países ricos na articulação de uma ordem global para a redução de emissões.
As duas iniciativas reforçam-se mutuamente. O combate amplo e efetivo ao desmatamento ilegal na Amazônia é condição para que o Brasil tenha a influência necessária na construção da ordem global, que, por sua vez, estabelecerá um preço mundial para o carbono que remunerará a conservação e a recuperação de áreas verdes, contribuindo para viabilizar a preservação a longo prazo da floresta.
Será necessária extraordinária capacidade de implementação ao novo governo para que esses compromissos não se juntem às tantas promessas irrealizadas de outros encontros climáticos internacionais. Mas o enfático anúncio dessas intenções já nos permite sonhar que possamos —ao menos no que se refere ao clima— parafrasear o poeta Manoel de Barros: ontem regou-se o futuro.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2022/11/discurso-de-lula-na-cop-foi-importante-e-acertado-mas-nao-basta.shtml
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