Entrevistas

‘PEC é irresponsável e insustentável’, afirma Pastore

Para economista, proposta atual vai fazer dívida disparar, eleva juro e reduz crescimento

Valor

O ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore diz que a PEC da Transição proposta ao Congresso pela equipe do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva “é um desastre” e poderá levar a um rápido aumento da dívida pública nos próximos anos.

“Se você tiver esse tipo de política fiscal que está aí proposta, não há banco central que consiga segurar a inflação. Ela vai para cima”, afirma o economista, que é sócio da consultoria A. C. Pastore & Associados. “Você cai num extremo de dominância [fiscal].”

Pastore diz que seria natural uma PEC de Transição que retirasse do teto de gastos algo como R$ 110 bilhões, para permitir a continuidade do pagamento do Bolsa Família de R$ 600, o benefício de R$ 150 por filho dentro desse programa e para fazer um ajuste no limite de despesa, que ficou mais apertado porque ele será corrigido por uma inflação menor do que se esperava.

Mas, afirma, a exceção deveria valer apenas por um ano, para dar tempo de a nova equipe econômica traçar em detalhes a sua estratégia fiscal e fazer uma proposta para criar uma nova âncora das contas públicas, seja uma teto de gastos modificado, seja outra solução.

“Estamos falando de R$ 198 bilhões para este ano e estamos falando, sem discutir o arcabouço fiscal, de mais R$ 175 bilhões nos anos seguintes”, afirma. “Isso vai provocar um aumento da dívida para 90% do PIB. Dívidas desse tamanho são insustentáveis.”

O ex-presidente do BC faz um apelo ao futuro governo Lula para refletir sobre a proposta. “O que precisa aqui é esfriar a cabeça”, defende. “Governo, esfrie a cabeça, use a velha teoria econômica, as evidências empíricas e dimensione o tipo de política fiscal que seja factível.”

Para ele, não há contradição em ter uma política fiscal sustentável ao lado de uma política social responsável, num país de renda média com uma grande parcela da população na extrema pobreza. Quem critica a falta de comprometimento fiscal da proposta apresentada pela equipe de transição, argumenta, não é contra as políticas sociais de transferência de renda.

“Claro que tem que criar oportunidades de emprego, de mobilidade social para que essa parcela da população saia da extrema pobreza e vá para os estratos mais desenvolvidos da sociedade”, afirma. “Isso, no entanto, atua no longo prazo. No longo prazo, como dizia Keynes, estaremos mortos. Temos que olhar para o curto prazo.”

Para Pastore, o presidente Lula vai pegar pela frente um ambiente econômico bem menos favorável do que encontrou a partir de 2003, quando a economia foi beneficiada pela alta das commodities e por um longo período de desvalorização do dólar.

O quadro fiscal, afirma, é mais desfavorável do que aquele que herdou do governo Fernando Henrique, quando havia superávits primários consistentes. O resultado positivo de 2022, afirma, se deve ao aumento temporário de arrecadação, gerado pela surpresa inflacionária. O governo atual usou parcialmente esse dinheiro na expansão de gastos, que agora estão se tornando permanentes. “Boa parte desse superávit que foi gerado não é um superávit estrutural.”

Pastore acha que os planos fiscais do novo governo poderiam levar o Banco Central a, no mínimo, manter os juros altos por mais tempo. “A taxa neutra não vais ser mais 4%, vai subir.” Adicionalmente, a incerteza está pressionando a taxa de câmbio, o que pode exigir mais juros para manter a inflação sob controle.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: O presidente eleito Lula vai pegar uma situação diferente da que encontrou em 2003?

Affonso Celso Pastore: Do ponto de vista externo, a situação em 2003 era extremamente favorável a gerar um ciclo de crescimento econômico muito forte. E, do ponto de vista fiscal, ele herdou um arcabouço fiscal do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso que gerava superávits primários e reduzia a relação dívida/PIB. Com isso, tirava os prêmios de risco, permitia reduzir taxas de juros, que se somava a um crescimento externo para turbinar o crescimento econômico. O que temos agora é o contrário disso.

Valor: Quais são as diferenças?

Pastore: Temos uma situação externa desfavorável, na qual o mundo vai desacelerar muito fortemente em 2023. Isso repercute desacelerando o crescimento brasileiro. E, do ponto de vista fiscal, o arcabouço fiscal tem que ser substituído. Estamos com uma relação entre dívida e PIB extremamente alta, que impede que você faça aumentos de gastos que piorem ainda mais a situação. Se piorar mais, aumentam ainda mais os prêmios de risco, sobem mais as taxas de juros, atuando fortemente na direção de desacelerar o crescimento econômico. A condição é oposta, portanto, da anterior.

Governo, esfrie a cabeça, use a velha teoria econômica e dimensione o tipo de política fiscal que seja factível”

Valor: Como está o ambiente para as commodities?

Pastore: As commodities têm os seus preços fixados em dólares. Isso faz com que um período de fortalecimento do dólar reduza os preços de commodities. Entre 2002 e 2012, tivemos o maior ciclo de enfraquecimento do dólar. Nesses últimos 50 anos, nunca aconteceu um enfraquecimento da magnitude daquele. Somado ao crescimento da China, turbinou o aumento de preços de commodities e, consequentemente, turbinou o ganho de relação de troca do Brasil. Agora estamos assistindo a uma coisa inversa. Os Estados Unidos entraram numa política monetária extremamente restritiva, da qual não vão sair tão cedo. O dólar está se fortalecendo relativamente a todas as moedas do mundo e atua, tudo mais constante, na direção de baixar preços de commodities. As únicas commodities que estão se comportando melhor são os alimentos, em decorrência de dois choques de oferta, a seca que atingiu fortemente a Europa e China e o controle dos embarques da Ucrânia, por causa da guerra com a Rússia. Quando você soma esses dois choques, os preços em dólares de commodities alimentos estão relativamente estáveis. Agora, os preços das outras commodities estão em queda. Ou seja, não há perdas de relação de troca no Brasil, mas também não há ganhos. Portanto não há como favorecer uma valorização do câmbio real, a não ser que entrassem capitais aqui no Brasil. A entrada de capitais está diretamente ligada à existência ou não de um arcabouço fiscal bem feito que tire o risco. Não tem o arcabouço fiscal e não tem a situação internacional, e o Banco Central não tem feito segredo de que a taxa de juros deve permanecer alta por um extenso período de tempo. Isso tudo limita o crescimento.

Valor: Teremos um superávit primário neste ano. Isso não significa que Lula terá um ponto de partida mais favorável?

Pastore: Esse é um ponto que deve ser olhado com o devido cuidado. Tivemos uma inflação mundial com elevações de preços de commodities, que são muito importantes para determinar quanto você tem de receita tributária. O FMI publicou um estudo no seu Monitor Fiscal de outubro que mostra o quanto teria caído a dívida de países como Brasil, Estados Unidos, Reino Unido e muitos outros se não tivessem aumentado os gastos, se eles só tivessem se beneficiado desse choque que aumentou receitas para baixar a dívida. No caso brasileiro, a dívida deveria ter caído 16,4 pontos de porcentagem do PIB. Ela não caiu isso, ela caiu só 10 pontos de porcentagem. Ela caiu menos do que cairia pelo grande aumento de receita. O governo aumentou gastos. A Lei de Responsabilidade Fiscal, que foi aprovada em 2001, tem o espírito, um princípio, que diz que, se você quiser fazer um aumento permanente de gastos, tem que ter uma fonte permanente de ganho de receitas. Você só transforma em aumento permanente de gastos aqueles que foram aumentos permanentes de receita. O aumento de receita que está aí é um aumento de uma surpresa inflacionária, como de forma simplificada o FMI chamou. Talvez não seja o melhor nome, mas vamos usá-lo. Essa é uma surpresa que gerou um ganho para um ano, para dois anos, mas que depois desaparece. Com isso, você gerou um aumentos permanentes de despesa.

Valor: Então esse superávit primário não é para valer?

Pastore: Boa parte desse superávit que foi gerado não é um superávit estrutural. É um superávit conjuntural que dependeu de um conjunto de situações, da surpresa inflacionária. Isso não aconteceu só no Brasil, aconteceu em vários países. Não diria que é fictício, nos sentido de que não existiu. Ele existiu. É fictício no sentido de que não é sustentável. Agora, o que acontece depois? A despesa tem que voltar para o normal. Só que o que estamos discutindo agora é transformar aquele aumento de despesa que aconteceu lá atrás em aumento permanente de despesa. Quer dizer, esses R$ 198 bilhões [de gastos acima do teto] que estão na PEC de Transição, nessa proposta para 2023, e os R$ 175 bilhões que estão para os três anos subsequentes, são aumentos permanentes. Quando você vai para uma projeção de dívida/ PIB, você terá em 2023 um aumento de 5 pontos percentuais.

Valor: O sr. tem falado do conflito da política fiscal e monetária. Que conflito é esse?

Pastore: Uma política fiscal expansionista estreita o hiato do PIB. Política monetária restritiva alarga o hiato do PIB. Para trazer essa inflação para baixo, você precisa alargar o hiato do PIB. Ou você tem que subir a taxa de desemprego, o que é a mesma coisa. Temos visto o Banco Central, nas atas e no Relatório de Inflação, dizer que suspeita que o hiato do PIB está mais estreito do que imaginava. Quando o Banco Central diz isso, ele está no fundo dizendo que a inflação está caindo menos porque economia está mais aquecida e, por isso, teve que colocar a política monetária no campo restritivo. Nós estamos hoje com a taxa de juros real acima da taxa neutra. Agora, a taxa neutra não é um constante da natureza. A taxa neutra é a taxa que iguala PIB atual a PIB potencial. Quando você produz uma expansão fiscal que coloca o PIB atual igual ou maior do que o PIB potencial, a taxa de juro real que coloca isso em equilíbrio passa a ser uma taxa maior. A taxa neutra de juros não é constante. Quanto mais o governo gasta, maior a taxa de juro real de equilíbrio da economia. Se não quiser olhar a teoria econômica, olha as evidências empíricas no Brasil. Nos anos em que o Brasil tinha disciplina fiscal menor, quando não tinha, como quando a presidente [Dilma] Rousseff acabou com o superávit primário, a taxa de juro real de mercado era mais alta. Quando o Brasil veio adquirindo disciplina fiscal, a taxa de juro real de mercado foi caindo.

Se você tiver esse tipo de política fiscal que está aí proposta, não há BC que consiga segurar a inflação”

Valor: Como está a situação atual?

Pastore: O [presidente do Banco Central, Roberto] Campos Neto, em uma palestra, se referiu a aumentos de gastos permanentes e aumentos de gastos transitórios. Um aumento transitório de gastos produz uma perturbação transitória sobre a taxa neutra e sobre a inflação. Um aumento permanente eleva a taxa neutra. Vou lhe dizer o seguinte: a estimativa deles é que a taxa neutra é 4%. Eu acho que a neutra pode ter sido 4%. Se continuarmos com o impulso fiscal positivo, essa taxa neutra vai para 4,2%, 4,4%, 4,5%, 4,7% e vai subindo. À medida que sobe a taxa neutra, para trazer a inflação para a meta você tem que deixar a taxa de juros real mais alta por mais tempo.

Valor: Isso já está afetando a política monetária do Banco Central?

Pastore: O mercado chegou quase a um consenso de que os 13,75% de Selic são suficientemente restritivos para trazer a inflação para a meta, porém só em 2024. Ou seja, é restritiva o suficiente, admitindo que esteja com um cenário benigno de política fiscal. Digamos, desde que o governo não vá aumentar o gasto, não vá furar o teto. Ou, se estourar o teto, estoure só nesse [próximo] ano, para poder acomodar a transição, depois o gasto volta para o teto. Nesse cenário, a Selic ficaria nos 13,75% até a metade de 2023 e cairia na segunda metade de 2023, gradualmente. Suponha agora que eles aprovem essa PEC que está lá, que é um cenário fiscal extremamente expansionista. Não tenho dúvida de que você vai ter vários efeitos negativos. Primeiro, essa taxa neutra não vai ser mais 4%, vai subir. Você vai precisar, no mínimo, deixar a taxa real de juro mais alta por mais tempo. Quer dizer, vai deixar no campo restritivo, ou no campo mais restritivo por mais tempo. Segundo, os prêmios de risco não aparecem num ativo só, aparecem em todos. O que está claro, à medida que for para o cenário não benigno fiscal, o câmbio vai ficar mais depreciado, e fica mais duro para a inflação cair. Se a taxa de juros já teria que ficar alta por mais tempo, com um câmbio mais depreciado ela vai ficar mais alta por um tempo ainda mais longo. Vai trazer a taxa de crescimento econômico para baixo, não para cima.

Valor: Qual é o problema com a PEC de Transição proposta?

Pastore: Para pagar os R$ 600 de Bolsa Família, você precisava de R$ 52 bilhões. Para incluir famílias de mais de dois filhos, precisava de mais R$ 16 bilhões. Precisa mais para corrigir um erro do teto de gastos. Quando o Orçamento foi mandado ao Congresso, o limite nominal de gastos foi calculado com a inflação de 7,2%, mas no fim vai dar perto de 6%. Seria preciso tirar R$ 110 bilhões fora do teto em 2023 para dar tempo de o novo time econômico entrar e fazer uma proposta de qual será o arcabouço fiscal, se é teto de gastos ou não. Mas [na proposta do futuro governo] estamos falando de R$ 198 bilhões para 2023 e estamos falando, sem discutir o arcabouço fiscal, de mais R$ 175 bilhões nos anos seguintes. Esse que é um desastre. Isso vai provocar um aumento da dívida para 90% do PIB. Dívidas desse tamanho são insustentáveis. Nem com um Banco Central politicamente independente é possível controlar a inflação com essa expansão fiscal. O Thomas Sargent, que ganhou o prêmio Nobel de Economia [em 2011], escreveu numa carta endereçada ao ministro da Fazenda do Brasil que países que têm políticas fiscais permanentemente expansionistas são países em que a inflação é sempre, e em todos os lugares, um fenômeno fiscal. A inflação deixa de ser um fenômeno monetário. Cito essa frase num paper recente para não usar a expressão que as pessoas passaram a não gostar mais, que se chama dominância fiscal. Se você tiver esse tipo de política fiscal que está aí proposta, não há banco central que consiga segurar a inflação. Ela vai para cima. Você cai num extremo de dominância. O que precisa aqui é esfriar a cabeça. Governo, esfrie a cabeça, use a velha teoria econômica, as evidencias empíricas e dimensione o tipo de política fiscal que seja factível.

Valor: Como ficam os gastos na área social?

Pastore: Tem um artigo do [economista] Marcos Mendes excelente publicado na “Folha”. Ele mostra que a responsabilidade fiscal não tem nada contra a responsabilidade social. Você pode ter responsabilidade social e cuidar da pobreza sem violar a responsabilidade fiscal. E ele explica direitinho, fazendo contas. Não tenho dúvida de que é possível fazer isso. Quem está criticando o governo por seguir um caminho fiscal não sustentável não é um sujeito que, em vez do coração, tem uma pedra dentro do peito, que não olha para a pobreza. Você tem que olhar para a pobreza. Um país que tem a renda per capita do Brasil e que tem um nível de pobreza extrema, como nós temos, tem que fazer transferência de renda. Claro que tem que criar oportunidades de emprego, de mobilidade social para que essa parcela da população saia da extrema pobreza e vá para os estratos mais desenvolvidos da sociedade. Isso, no entanto, atua no longo prazo. No longo prazo, como dizia Keynes, estaremos mortos. Temos que olhar para o curto prazo. Agora, a transferência de renda cabe dentro de um Orçamento fiscalmente responsável. que atenda às restrições. Esta proposta que está na PEC não é fiscalmente responsável. É fiscalmente irresponsável. Ela é insustentável. A obrigação do governo é olhar como ele muda isso.

Valor: É possível ter uma PEC desse tamanho que aumente os gastos e, ao mesmo tempo, ganhar a confiança dos mercados.

Pastore: Ou você aumenta imposto ou controla gasto. Isso vai ter credibilidade. O mercado vai olhar para a trajetória de dívida, e vamos saber se tem confiança ou não. Precisa saber o detalhe do pacote que vem.

Valor: É possível ter uma solução com aumentos de impostos?

Pastore: Tudo é possível, desde que faça direito. Não sei o que vão propor. Sei o que propuseram. O que propuseram é um desastre.

Link da publicação: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/11/23/pec-e-irresponsavel-e-insustentavel-afirma-pastore.ghtml

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