Folha
A era neoliberal representa uma derrota do projeto da esquerda nos países do Primeiro Mundo de elevar a carga tributária a valores muito maiores que 45% do PIB.
Há muita variabilidade —nos países de língua inglesa, a carga é menor; nos europeus continentais, é maior. No entanto, a partir da década de 1980, os eleitores não chancelaram novas rodadas de elevação de impostos.
No Brasil, os eleitores impuseram uma trava à elevação da carga tributária a partir dos anos 2000. Desde a rejeição da medida provisória 232, em 2004, que ampliava a tributação sobre prestadores de serviços e foi rejeitada, o Congresso Nacional tem se recusado a aprovar projetos que aumentem o peso dos impostos.
A esquerda brasileira tenta agora empregar outra estratégia. Num ato de quase desistência da política, busca criar um fato consumado: elevar o gasto sem que haja provisão de receita —e esperar pela nova crise fiscal. A aposta é que, quando ela vier, o Congresso entregará os impostos requeridos para financiar o Estado de forma não inflacionária.
É exatamente a mesma estratégia (com sinal trocado) empregada pelo Partido Republicano americano em várias oportunidades. Os republicanos, quando no poder, reduzem os impostos, desoneram —consequentemente, promovem forte alta no endividamento público. No ciclo seguinte, é necessário haver um ajuste fiscal, e não sobra muito espaço para os democratas gastarem. Clinton teve de lidar com essa realidade.
A estratégia funciona por lá, pois, no presidencialismo bipartidário norte-americano, se há descontrole macroeconômico —baixo crescimento, inflação, desemprego alto ou queda generalizada de salários—, a responsabilidade é do Executivo. Dado que há somente dois partidos, os deputados e senadores do partido do presidente são vistos pelo eleitor como corresponsáveis pela crise. Com receio de ser punido pelo eleitor, o Legislativo também se vê na obrigação de arrumar a macroeconomia.
No presidencialismo multipartidário brasileiro, não ocorre atribuição de responsabilidade à base de sustentação do Executivo no Congresso por problemas na gestão de políticas macroeconômicas. A responsabilidade se concentra fundamentalmente na figura do presidente e no seu partido.
Sempre que há descontrole macroeconômico, os deputados e os senadores dos partidos da coalizão do presidente podem abandonar o barco e jogar a crise fiscal no colo do Executivo e do seu partido. Foi exatamente o que ocorreu em 2015.
Ao tentar iniciar seu governo com um buraco fiscal —a diferença entre o superávit primário necessário para estabilizar a dívida pública e o existente— de 4% a 4,5% do PIB em vez dos atuais 2% a 2,5% do PIB, Lula poderá produzir rapidamente uma crise fiscal. Quando for pedir mais carga tributária ao Congresso, este provavelmente se recusará a entregar.
Vivemos um conflito distributivo aberto desde 2015. A sociedade, por meio do Congresso, deu direitos a indivíduos e empresas sobre rendas do Orçamento, e esse mesmo Congresso estabeleceu bases tributárias que, em condições normais de funcionamento da economia, não conversam com os gastos. Há um déficit fiscal estrutural. O teto dos gastos foi a resposta da política a esse dilema.
A saída da esquerda tem sido tecnocrática, técnica em geral empregada pela direita. “Vamos discutir regras fiscais.” Somos expostos a uma profusão de papers e working papers de FMI, ODCE etc., todos demonstrando os problemas e quão desatualizado é o teto dos gastos.
É uma ótima notícia a conversão da esquerda ao conhecimento técnico. Mas antes seria melhor que a esquerda retornasse às suas origens e enfrentasse o tema relevante: quem vai pagar a conta? O resultado da inação é conhecido: mais inflação cujos impactos serão pagos, como sempre, pelos mais pobres.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2022/11/esquerda-tecnocratica.shtml
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