Folha
Após anos em que o hemisfério norte teve que lidar com uma pressão desinflacionária, com risco de deflação e juros nominais próximos do limite inferior de zero, a Covid trouxe de volta a inflação.
Já tivemos oportunidade de discutir na coluna a natureza da inflação. Além dos choques de commodities agrícolas, produzidos já no final de 2019 pela gripe suína africana, que abateu 40% do rebanho chinês, e, mais recentemente, pela Guerra da Ucrânia, houve na virada de 2020 para 2021 forte desorganização das cadeias globais de valor. O preço dos bens industriais explodiu.
O longuíssimo período de distanciamento social, com uso muito intenso do espaço doméstico, elevou a demanda por bens de consumo duráveis e bens industriais em geral. Foi necessário adaptar o ambiente doméstico aos novos usos que passaram a serem feitos dele.
Há duas características notáveis desses choques. Primeira, a pandemia não foi prevista. O choque pandêmico foi exógeno às dinâmicas das diversas economias. Segunda, no período anterior houve relativa convergência da inflação entre os países do hemisfério norte.
Apesar de a convergência prévia e do choque serem compartilhados, a inflação não tem se elevado da mesma forma em todos os países. Também sabemos que a resposta fiscal não foi a mesma.
Questão: será que há uma associação entre a resposta fiscal e o surto inflacionário? Os países que destinaram orçamentos maiores para a sustentação de renda das pessoas são aqueles em que hoje a inflação é maior?
Estamos diante de uma situação rara em macroeconomia. A maior dificuldade é que todas as variáveis estão mudando simultaneamente. É muito difícil caracterizar causalidade. Estamos sempre em meio a um processo dinâmico, em que é muito difícil estabelecer um início. Isto é, estabelecer um momento e um fato que sejam desconectados de uma dinâmica anterior.
Recente trabalho de Òscar Jordà e Fernanda Nechio, pesquisadores da unidade de São Francisco do Banco Central americano, identificaram o impacto das políticas de sustentação da renda sobre a inflação. A estratégia de identificação foi exatamente a descrita no parágrafo anterior.
Os autores consideraram Canadá, EUA e 15 países europeus. Para cada economia, construíram a variável “desvio da renda pessoal”. Trata-se da diferença entre a renda real pessoal efetiva, que inclui os benefícios dos programas de transferência de renda emergenciais em função da pandemia, e a renda real pessoal caso não tivesse ocorrido a epidemia. Esta última é dada pela simples extrapolação da tendência que vigorava antes da crise. Evidentemente, essa variável tem dinâmica muito diferente entre os países.
O trabalho tem dois resultados importantes. Primeiro, “um aumento de 5 pontos percentuais na renda disponível real em relação à tendência se traduz em cerca de 2,5 pontos percentuais de inflação adicional após quatro trimestres. Descobrimos que o efeito sobre os salários é de magnitude semelhante”.
Esse efeito será diverso a depender da distribuição ao longo do tempo do pacote de auxílio. Mais espalhado no tempo gerará menos inflação.
O segundo resultado do trabalho é a importância das expectativas inflacionárias na determinação dos aumentos de salários. Mesmo que, antes da epidemia, dado o ambiente altamente desinflacionário, as expectativas fossem pouco importantes, a mudança para o regime de inflação maior elevou o peso das expectativas inflacionárias na determinação dos salários nominais.
O trabalho rejeita a visão de que há grande elasticidade de oferta a choques de demanda. A escassez impera. Viva a economia política. É necessário saber quem paga a conta e quem se beneficia do Estado.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2022/12/a-inflacao-da-covid.shtml
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