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Não se pode ignorar os efeitos colaterais da PEC da Transição

Folha

governo Lula não tomou posse ainda, mas já vem dando sinais importantes sobre que caminho tomará na área econômica. Em seus dois mandatos, o presidente Lula manteve a política de responsabilidade fiscal que herdou de seu antecessor. Foram anos de superávits primários, salvo a correta política de expansão em resposta à grande crise global de 2008.

O presidente eleito manteve também ou ampliou uma agenda de reformas voltadas para a redução das desigualdades e o aumento da produtividade. Foi um bom período para a economia, que cresceu um pouco mais do que o resto da América Latina (mas bastante menos do que a média dos países emergentes).

Durante a campanha, o candidato Lula evitou entrar em detalhes quanto à sua visão do futuro fiscal do país, mencionando apenas o seu histórico como garantia de bom comportamento. Passados dois meses das eleições, tudo indica que o superávit primário de 0,6% do PIB em 2022 se transformará em 2023 em um déficit próximo de 2,0%. Alguma deterioração fiscal já era esperada, em razão de fatores não recorrentes como o congelamento dos salários e a alta das commodities. No entanto, me parece imprudente ignorar os efeitos colaterais dessa expansão fiscal, reforçados por sinais explícitos de falta de apreço pela responsabilidade fiscal que tanto bem fez ao país enquanto durou. Vejamos alguns.

Em primeiro lugar, em razão da alta da inflação a partir de 2021, o BC (Banco Central) vem elevando a taxa de juros, em linha com sua missão precípua. O esforço vem dando resultado, mas as expectativas de inflação embutidas nas taxas de juros dos títulos do governo ainda apontam para uma inflação de 6,5% ao ano a perder de vista, o que significa que o trabalho do BC está longe de estar concluído.

A economia superou a crise associada à pandemia e mostra razoável dinamismo no mercado de trabalho. Nesse contexto, uma substancial expansão fiscal como a que está sendo gestada pressionaria a inflação para cima e, portanto, representaria uma frontal contradição com o trabalho do BC, que seria forçado a aumentar ainda mais as taxas de juros. Ou seja, um grave erro, semelhante ao cometido no governo Dilma e que resultou na profunda recessão de 2015-16.

Em segundo lugar (e, como consequência do que tudo indica, será um bate-cabeça entre as políticas fiscal e monetária), a dívida pública retomaria uma ainda mais acelerada trajetória de crescimento. Tal crescimento seria fonte de elevada incerteza quanto ao futuro da economia, ensejando cenários de alta da inflação, depreciação do real, alta dos juros, aumento da carga tributária, recessão e desemprego.

O futuro ministro da Fazenda, Fernando Haddad, vem sinalizando a intenção de reintroduzir uma âncora fiscal, o que seria de todo desejável. Do que se trata? Basicamente de um compromisso com uma política fiscal que mantenha em níveis razoáveis o gasto e a dívida públicos. Uma possibilidade aventada recentemente nesta Folha por Marcos Mendes e por mim seria recuperar elementos da Lei de Responsabilidade Fiscal e do teto de gastos. O foco maior seria no controle do gasto público, posto que a carga tributária no Brasil já é bastante elevada para um país de renda média, salvo no que tange à eliminação das brechas regressivas das regras do Imposto de Renda.

Tal ajuste teria que ocorrer nas rubricas mais relevantes, como a folha de pagamentos e a Previdência. Em todas, o ajuste poderia e deveria contribuir diretamente para uma redução da desigualdade de renda, algo que certamente deveria fazer parte dos planos de um governo de centro-esquerda de um país tão desigual como o nosso.

Não há chance de sucesso sem encarar esse desafio, mas as resistências serão ferozes, como sempre. Nessas horas, cabe a nossos líderes lembrar que com o grande ajuste ocorreria uma relevante queda nos prêmios de risco na economia, elemento essencial para a construção de um círculo virtuoso de crescimento e estabilidade.

Mas, mais importante do que uma nova âncora, que em um primeiro momento careceria de credibilidade, seria anunciar (e cumprir) metas para o saldo primário e o gasto público por, pelo menos, três anos. Como sugestão, no mínimo, eu apontaria uma imediata redução do déficit primário projetado para o ano que vem para, no máximo, 1% do PIB, seguido de superávits primários de 0,5% em 2024 e 2% em 2025. Para que não reste dúvida, estou falando de gastos adicionais bem inferiores aos que foram aprovados na PEC de Transição ou a partir de decisões do STF.

Seria um primeiro passo na direção de um gasto público genuinamente mais voltado para o social, sem a quase certeza da volta da inflação e da recessão que sempre trouxeram tanto sofrimento à população.

Olhando mais adiante, o ideal seria chegar a 2026 com um saldo primário que pusesse em queda a relação dívida/PIB. Esse resultado depende também dos níveis da taxa de juros (r) e da taxa de crescimento da economia (g). Quanto menor a famosa diferença “r menos g”, melhor. Essa diferença depende de uma miríade de fatores qualitativos e institucionais que contribuem para aumentar a produtividade e reduzir a incerteza na economia.

Há muito espaço para avançar, mas todo cuidado aqui é pouco. Propostas de revisão para pior dos marcos legais do saneamento e das estatais sinalizam a volta a um Brasil velho, desigual e incapaz de crescer de forma sustentada e inclusiva.

Finalmente, resta o argumento de que a responsabilidade social tem pressa. Tem que ter mesmo. Mas, como procurei demonstrar aqui, a expansão fiscal ora em consideração seria um tiro pela culatra. E não custa lembrar que as consequências políticas de um fracasso econômico seriam nefastas.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/arminio-fraga/2022/12/nao-se-pode-ignorar-os-efeitos-colaterais-da-pec-da-transicao.shtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Arminio Fraga