Autoridade político-administrativa do Supremo pode levar a um choque de competências entre o Poder Executivo e a cúpula do Judiciário
Globo
Estamos todos ainda mergulhados na factualidade dos acontecimentos de 8 de janeiro, agora voltada às medidas investigativas e repressivas que se sucedem. Não se está, neste momento, buscando os precedentes históricos e os horizontes políticos que devem se desenhar em decorrência do inescapável simbolismo dessa enorme afronta aos santuários do poder. Deve-se analisar a inescapável semelhança do 8 de janeiro com fatos de nossa História. E, em seguida, começar a refletir sobre o possível confronto entre o poder hegemônico hoje exercido pelo Supremo, sobrepondo-se às prerrogativas constitucionais do Poder Executivo.
Precedente semelhante foi o levante integralista de 11 de maio de 1938, que culminou com o assalto dos camisas-verdes ao Palácio Guanabara, residência do presidente da República, alta madrugada. Visavam à tomada do poder, com o assassinato de Getúlio Vargas e a conclamação, pela Rádio Nacional, aos militares integralistas para que tomassem o comando de suas unidades e convergissem para a capital federal. O malogrado movimento insurrecional não contou com a liderança de Plínio Salgado, que, deprimido pela exclusão e perseguição aos integralistas pela ditadura Vargas, recolhera-se da política, num autoexílio, numa cidade do interior paulista. O líder da mal-ajambrada revolta era um simples tenente, Severo Fournier, coadjuvado por um obscuro ideólogo do movimento, Belmiro Valverde, cuja avançada tuberculose não o impediu de participar, cambaleante, da atabalhoada invasão ao palácio.
Outra semelhança óbvia. O oficial comandante da guarda do palácio naquele dia era um simpatizante do movimento integralista, que, ao dispensar o contingente de guarda, permitiu a invasão do Palácio Guanabara pelos insurgentes, que ali permaneceram por umas poucas horas, até que o ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, juntasse esquálidos 26 soldados amealhados no Forte do Leme para escorraçar os sublevados das instalações palacianas. A violenta repressão ficou por conta do sinistro Filinto Müller, com as costas quentes de outra figura patética, o General Góis Monteiro, tudo com o efetivo respaldo do dissimulado e glacial ditador.
Em ambos os assaltos às instalações do poder — o de agora e o de 1938 —, não houve uma organização plausível, a liderança da ação era insignificante e irrelevante, e as invasões foram facilitadas por agentes do Estado.
Os danos políticos foram e são muito significativos nos dois eventos. O levante integralista resultou numa falsa legitimação do regime do Estado Novo, cuja propaganda ao estilo Goebbels, a cargo do tenebroso Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), promoveu o getulismo, intenso culto da personalidade do Doutor Getúlio, apresentado como o grande pacificador da nação, o Pai dos Pobres, o condutor providencial do povo brasileiro. Essa imagem fabricada pelo DIP foi de tal ordem exitosa que o ex-ditador, recolhido em São Borja por cinco anos após sua deposição, voltou nos braços do povo em 1950. O fracassado assalto de um punhado de alucinados integralistas à sede do poder provocou prisões em massa dos opositores (comunistas e integralistas) sem formação de culpa, jogados nos calabouços da ditadura como o da Ilha Grande, retratado por Graciliano Ramos.
Na presente invasão, a repressão se funda na Lei 14.197, de 2021, que instituiu os crimes contra o Estado Democrático de Direito. Sua execução está a cargo do ministro Alexandre de Moraes, com o respaldo do plenário do STF, que excede em muito as funções jurisdicionais outorgadas pela Constituição Federal à Corte Suprema. Essa autoridade político-administrativa do Supremo pode levar a um choque de competências entre o Poder Executivo e a cúpula do Judiciário, na medida em que o poder de mando ora compartilhado entre os dois Poderes é notório no país. Veja-se a ordem de desobstrução das estradas, que não foi dada pelo ministro da Justiça, mas pelo ministro Alexandre de Moraes. Há uma evidente sobreposição de competências, que deve ser superada, sob pena de se instalar uma insegurança institucional permanente.
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