Artigos

Tragédias

Folha

As últimas semanas foram ricas em notícias relacionadas, direta e indiretamente, ao combate ao aquecimento global. Pode-se discutir se o saldo final é positivo ou não para o mundo, mas não tenho dúvidas de que é muito negativo para o Brasil.

O aquecimento global resulta de uma situação conhecida em economia como “tragédia dos bens comuns”. Ocorre quando muitas pessoas têm acesso a um bem coletivo, mas cada uma busca maximizar seu interesse individual, provocando a degradação do bem em prejuízo de todos.

A teoria surgiu a partir do exemplo inglês da utilização de pastos comunitários por criadores de carneiros. Cada criador procura colocar o máximo de animais no pasto, provocando a sua exaustão. No fim, todos perdem.

No caso do aquecimento global, o pasto é a atmosfera, e os carneiros são os gases de efeito estufa (GEE) resultantes principalmente da queima de combustíveis fósseis. Como a atmosfera é um bem comum, foi ocupada indiscriminadamente sem que ninguém pagasse nada por isso. Agora está perto da exaustão e é necessário reduzir a zero a emissão de GEE até 2050, sob pena de provocar um nível de aquecimento que comprometa gravemente as condições de vida no planeta.

A solução intuitiva e óbvia é estabelecer uma governança que regule o direito à emissão de gases, e a forma mais simples de implementá-la é através de um preço global por tonelada de GEE, de modo a desestimular os processos emissores e encorajar o desenvolvimento de tecnologias alternativas e mudança de hábitos.

A União Europeia tem liderado esse processo no mundo através do sistema de “cap & trade”, recentemente aperfeiçoado com um imposto de importação baseado no conteúdo de GEE de cada produto, o “carbon border tax”.

Ocorre que os demais países resistem fortemente a adotar medidas semelhantes, receando desagradar aos eleitores. O Congresso dos EUA, há poucos meses, aprovou um pacote ambiental chamado “Inflation Reduction Act” (IRA), que contém um volume expressivo de subsídios ao desenvolvimento de tecnologias “limpas”, mas não traz uma única medida taxando a emissão de GEE.

É como se, no exemplo histórico, em vez de cobrar pelo uso do pasto, se concedessem subsídios para desenvolver uma alimentação alternativa para os carneiros. O problema, naturalmente, é que os animais não deixam de pastar, enquanto aguardam o novo cardápio.

A reunião de Davos em janeiro foi dominada pela discussão dessa questão. A presidente da Comissão Europeia protestou contra os subsídios americanos, que criam uma situação injusta de competição, provocando fuga de investimentos e empresas tecnológicas europeias para os EUA, onde encontram condições mais favoráveis.

Economistas de renome, como Olivier Blanchard, utilizaram o termo “guerra comercial” para se referir à política americana, e o jornal inglês Financial Times noticia que investidores pressionam uma empresa alemã que atua na fronteira tecnológica da geração de energia limpa, Marvel Fusion, a mudar-se para os EUA para usufruir dos subsídios do IRA.

Ao ler sobre essas reações, fui tomado de desânimo e me veio à mente a imagem da Torre de Babel; apesar do objetivo comum —o “net zero”—, os homens são incapazes de se entender para atingi-lo.
Pressionados pelos fatos, alguns representantes europeus opinaram publicamente que a União Europeia deveria também estabelecer uma política de subsídios em resposta à iniciativa americana e que algum acordo deveria ser negociado.

A ideia é polêmica, uma vez que a concessão de diferentes subsídios por diferentes membros do bloco contraria os fundamentos do mercado comum europeu. Por outro lado, atores relevantes, como Faith Birol, diretor da Agência de Energia Internacional, consideraram o IRA “a iniciativa climática mais importante desde o Acordo de Paris em 2015″.

Entusiasmo semelhante foi manifestado por muitos empresários presentes a Davos.

Refletindo sobre essas declarações, julguei natural o entusiasmo que o IRA desperta. Afinal, a medida é o que se chama “fuga para a frente”; em vez de retroceder, avançar. Em vez de reduzir a atividade para conter as emissões de GEE, aumentar os investimentos, buscando soluções alternativas. Quem, afinal, não gostaria de emagrecer comendo mais? Resta saber se a terapia terá bons resultados.

Também em janeiro, Nicholas Stern, reconhecido economista envolvido com o combate ao aquecimento global, publicou um trabalho no qual prevê que novas tecnologias limpas para setores como aviação, cimento e aço se tornarão competitivas em datas variando de hoje a 2030.

Esse conjunto de reações me levou a reconsiderar o pessimismo contido na metáfora da Torre de Babel. Ponderei que a humanidade deve seu progresso com maior frequência à competição que anima o engenho humano do que a ações coordenadas em empreitadas comuns. Por que não seria assim desta vez?

Eu gostaria de encerrar esta coluna no tom positivo da frase acima. Mas resta tratar das implicações para o Brasil. A falta de uma governança global que estabeleça um preço que onere as emissões de GEE traz como contrapartida provável a ausência de remuneração para a captura de GEE. Esses recursos seriam fundamentais para financiar a preservação de nossas florestas e recuperação de áreas degradadas.

Para agravar ainda mais a situação, o jornal inglês The Guardian, tradicionalmente preocupado com questões ambientais, publicou ampla reportagem na qual afirma que mais de 90% dos créditos de carbono provenientes de florestas tropicais não têm nenhum valor. A pesquisa citada aponta que a empresa americana Verra, que certifica 75% de todos os créditos de carbono negociados no mercado voluntário, utiliza critérios de avaliação falhos. A empresa reagiu vigorosamente e outros órgãos da comunidade científica a apoiaram, mas a polêmica está criada e naturalmente afeta negativamente o valor que se pode obter com a conservação e a recuperação de florestas tropicais.

Dessa forma, não apenas nosso principal “produto verde” —o potencial de captura de carbono de nossas florestas— está ameaçado de ficar sem mercado como também a própria qualidade dessa captura carece de certificação adequada. Enfrentar esse duplo desafio deve ser prioridade de nossa política ambiental.
Finalmente, ameaça muito mais concreta à preservação de nossas florestas veio contida na revelação das condições sub-humanas de vida na reserva yanomami, invadida por garimpeiros contando com a complacência do Estado e, inevitável reconhecer, da sociedade brasileira.

A questão ambiental empalidece diante do terrível drama humano e da vergonha de vermos renovadas nos nossos dias as duras palavras que Castro Alves dirigiu ao auriverde pendão de nossa terra: “Antes te houvessem roto na batalha, que servires a um povo de mortalha”.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2023/02/as-tragedias-que-rondam-o-principal-produto-verde-do-brasil.shtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Candido Bracher