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Pandemia e trabalho de casa

A pandemia, ao escancarar os benefícios do home office, está mudando a forma de organização do trabalho, e permitindo que muitas pessoas tenham mais flexibilidade e escapem do trânsito nas grandes cidades

Valor

A pandemia foi um choque inesperado que mudou a vida das pessoas no mundo todo. Milhões de pessoas permaneceram em distanciamento social, muitos ficaram doentes, morreram ou perderam parentes, perderam seu emprego e ficaram sem frequentar a escola.

Agora que a pandemia está passando, graças às vacinas, podemos analisar com mais calma os efeitos de médio e longo prazo da covid. Neste artigo, vamos focar nos efeitos da pandemia sobre o mercado de trabalho.

Analisando os dados mais recentes do mercado de trabalho no Brasil, podemos notar que a pandemia teve poucos efeitos nos indicadores agregados, como a taxa de participação, o desemprego e o salário médio. A taxa de participação na força de trabalho, que era de 64% em 2019, está atualmente em 63%. O salário médio está por volta de R$ 2.650, apenas um pouco abaixo de 2019. E a taxa de desemprego está bem mais baixa, 9% em vez de 12%. Assim, podemos concluir que a pandemia não teve efeitos no mercado de trabalho?

Não é bem assim. A principal mudança está ocorrendo na parcela de empregados que trabalham de casa. A figura abaixo, feita com dados da Pnad Contínua, mostra que em 2019, apenas 7% dos trabalhadores trabalhavam de casa, tanto entre os mais qualificados (aqueles com ensino superior ou mais), como entre os menos qualificados (que têm até o ensino médio). No entanto, entre 2019 e 2021 esta parcela aumentou muito entre os mais qualificados, atingindo 16% em 2021. Mais ainda, esta taxa permaneceu ao redor de 14% mesmo após o fim da pandemia, o dobro do que era observado em 2019. Vale notar que a pesquisa não leva em conta a possibilidade de trabalho híbrido, pois pergunta apenas sobre o local principal de trabalho, ou seja, os dados estão subestimando a parcela de pessoas que trabalham alguns dias em casa.

Ao olharmos a parcela de trabalhadores em “home office” para grupos específicos, podemos notar outras diferenças marcantes. O grupo de jovens é o que menos está trabalhando de casa, sendo que o principal aumento após a pandemia foi entre os idosos (passando de 16% para 20%) e adultos (6% a 9%). As mulheres foram as que mais se beneficiaram do trabalho à distância, com um aumento de 11% para 14% após a pandemia. Em termos regionais, o grande aumento de trabalho à distância ocorreu no Sudeste, onde a parcela subiu de 5% para 11% dos trabalhadores, alcançando o Nordeste, que sempre teve uma alta taxa de trabalhadores de casa.

E como a situação no Brasil se compara com outros países? Pesquisas recentes conduzidas pelo professor Nick Bloom, de Stanford, mostra que os brasileiros são os que mais desejam trabalhar de casa, com uma média 2,3 dias na semana, a maior dentre os 30 países estudados. Isto ocorre porque o tempo de viagem para o trabalho é muito grande no Brasil, por causa da falta de transporte público de qualidade e trânsito. Ao trabalhar de casa, o brasileiro poupa 1 hora e meia no trânsito em média. Ele usa 40% deste tempo extra para trabalhar mais, 32% para mais atividades de lazer e 12% do tempo para cuidar dos filhos ou pais, segundo a pesquisa.

A ampliação do trabalho feito em casa tem várias implicações. Em primeiro lugar, ao diminuir o tempo no trânsito e aumentar o tempo dedicado ao trabalho, o “home office” está aumentando a produtividade dos trabalhadores e da economia. Além disto, como a maior parte da responsabilidade pelo trabalho doméstico e criação dos filhos ainda recai mais sobre as mulheres, são elas que mais se beneficiam com a flexibilidade no horário. Assim, muitas mulheres não precisarão mais deixar o emprego ou trabalhar menos horas para se dedicar às tarefas domésticas, o que deverá diminuir os diferenciais de salário por gênero.

Mas, há consequências negativas também. Para poder trabalhar de casa, a pessoa tem que ter uma ocupação que não exija sua presença física, obviamente, e tem que ter habilidades computacionais. Assim, quem está mais se beneficiando do tempo extra que o trabalho em casa permite são as pessoas com ensino superior, as mais velhas e as que moram na região do Sudeste, ou seja, as pessoas que já tinham melhores condições socioeconômicas antes da crise.

Como estas pessoas estão diminuindo o tempo gasto no trânsito e dedicando mais tempo ao trabalho, isto deverá aumentar ainda mais a sua produtividade e, portanto, seu salário, contribuindo para aumentar a desigualdade no mercado de trabalho. Além disto, elas poderão investir mais nos seus filhos, ao contrário das pessoas mais pobres, que continuarão tendo que andar de ônibus, o que tenderá a ampliar a desigualdade de oportunidades no futuro.

Assim, a pandemia, ao escancarar os benefícios do trabalho à distância, está mudando a forma de organização do trabalho, e permitindo que muitas pessoas tenham mais flexibilidade e escapem do trânsito nas grandes cidades. No entanto, isto deverá contribuir para tornar a sociedade ainda mais desigual no futuro.

Link da publicação: https://valor.globo.com/brasil/coluna/pandemia-e-trabalho-de-casa.ghtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Naercio Menezes Filho