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Rumo ao novo arcabouço fiscal

Um regime fiscal mais previsível contaria com parâmetros explícitos para o crescimento dos dispêndios

Valor

Com a discussão sobre as metas de inflação ainda inconclusa, o foco de atenção, no que se refere à política econômica, voltou-se para a definição e apresentação de um novo arcabouço fiscal, que deve ocorrer nesse mês.

Reformar o arcabouço fiscal tornou-se necessário depois da série de alterações ao regime de 2016, centrado no chamado Teto de Gastos, desencadeado pela maioria da classe política nos últimos anos. Cabe registrar que não foi a pandemia que vitimou o Teto, dado que seu mecanismo de flexibilização/ajuste funcionou a contento entre 2020 e 2021: os gastos subiram 6,1% do PIB no primeiro ano, e caíram 7,5% do produto no segundo.

O Teto acabou ruindo quando as receitas passaram a experimentar forte expansão, a partir de 2021, crescimento acumulado equivalente a quatro pontos percentuais do PIB, e as autoridades políticas, no Executivo e no Legislativo, resolveram que parte relevante desse aumento de receita, ainda que insuficiente para equilibrar as contas públicas e de natureza predominantemente temporária, deveria ser utilizado para financiar incrementos de gastos, além do previsto pelo Teto.

Um regime fiscal mais previsível contaria com parâmetros explícitos para o crescimento dos dispêndios

Em uma perspectiva mais ampla, o Teto caiu porque com o tempo se mostrou inconsistente com a cultura política dominante, e com o que a sociedade se acostumou a esperar do Estado.

Isto posto, exceto pela opção de se adotar uma política fiscal totalmente discricionária, que seria bem imprudente em um país emergente de dívida pública elevada, cabe às autoridades desenhar um novo arcabouço e colocá-lo em prática, após passagem pelo Congresso. Tal arcabouço envolve aspectos críticos da política fiscal, como os parâmetros para determinar o ritmo de crescimento de gastos e receitas almejadas, métricas de desempenho, e objetivos de médio e longo prazo – por exemplo, estabilizar a razão entre dívida e PIB, bem como mecanismos de correção. Conceitualmente, portanto, arcabouço fiscal vai além de uma simples regra para aspectos da política fazendária.

Enquanto aguardamos a divulgação do novo arcabouço, vale considerar que atributos constituiriam um formato crível, que aumentaria a previsibilidade da política fiscal e levaria à queda dos prêmios de risco embutidos nos preços de ativos brasileiros.

Como bem colocado por meu colega no Itaú Unibanco, Pedro Schneider, um arcabouço crível deveria reunir aspectos de simplicidade, previsibilidade e impositividade – ponto também ressaltado por economistas de organizações multilaterais.

Simplicidade implica recorrer a parâmetros observáveis ou facilmente estimáveis. Um arcabouço prevendo, hipoteticamente, gastos que crescem ou devem ser ajustados em função de uma expectativa de hiato de produto ou do estágio do ciclo econômico não cumpriria tal quesito. Como se define o hiato? Quem o faria? Há um colegiado da FGV, o comitê de datação de ciclos (Codace), composto por economistas independentes, de alta capacidade técnica e reputação, mas cuja atividade é basicamente retrospectiva, e não facilmente adaptável ao exercício orçamentário. Comitês de datação cíclica submetidos às autoridades públicas provavelmente sofreriam de algum tipo de conflito de interesses, com uma governança potencialmente complexa.

Outro critério importante é o da previsibilidade. O novo arcabouço deveria contemplar cláusulas de escape bem definidas (por exemplo, uma nova pandemia, assim definida pela Organização Mundial de Saúde, ou conflito militar), e que não dependa de hipóteses manipuláveis e sujeitas a incerteza, como sobre a evolução do deflator e/ou do crescimento prospectivo do PIB. Como o grau de controle do governo sobre suas despesas tende a ser muito maior do que sobre as receitas, que dependem de fatores como a atividade econômica e preços de matérias primas, um arcabouço mais previsível contaria com parâmetros explícitos para o crescimento dos dispêndios.

Finalmente, seria importante que o novo arcabouço incluísse medidas automáticas de correção de desvios, ou de compensações diante dos mesmos. Idealmente, tais medidas seriam de caráter permanente, e não algo a ser redefinido a cada ano. O arcabouço deveria incluir também critérios explícitos e transparentes sobre condições que levariam a flexibilização ou maior restrição da política fiscal (por exemplo, um determinado patamar da razão dívida-PIB). Mecanismos corretivos automáticos, bem definidos e com base legal apropriada, tendem a reduzir o custo político de medidas de ajuste, e contribuem para um melhor funcionamento da política fiscal.

O arcabouço em vias de ser substituído, o Teto de Gastos, cumpria em linhas gerais os critérios acima. Mas esta não é a única alternativa possível. Especificamente, um arcabouço que preveja uma expansão limitada dos gastos, dentro de uma estratégia de médio prazo que vise a estabilização da razão dívida-PIB, poderia também cumprir os critérios acima, ainda que este provavelmente seja um caminho mais gradualista, então mais sujeito a riscos, do que simplesmente retornar ao Teto em sua versão original. Mas seria um caminho quiçá mais consistente com a demanda atual e a cultura política que prevalece no país e, assim, possivelmente mais sustentável e menos sujeito a alterações recorrentes ao longo do tempo.

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Sobre o autor

Mario Magalhães Carvalho Mesquita