Conjuntura Econômica
Se Lula pedir ao Congresso mais impostos e este recusar, impasse fiscal deve levar à política monetária acomodatícia. Reinflação deve ser lenta pois Brasil é credor líquido em moeda forte. Próximo presidente herdará problema.
A coluna Ponto de Vista do mês passado tratou dos primeiros passos do governo Lula. A principal característica de Lula III foi rasgar o livro texto da ciência política e começar o governo com o pé no acelerador do gasto público. Elaboramos sobre como os diversos analistas políticos têm interpretado o caminho escolhido por Lula.
Também se argumentou na coluna anterior que provavelmente Lula terá que pedir ao Congresso Nacional elevação da carga tributária, e que esse aumento não poderá ser compartilhado com os entes subnacionais e terá que ser desvinculado de outros gastos do Estado. Tem que vir ‘limpinho’ para compor o superávit primário.
Segundo dados de meu colega do FGV IBRE Bráulio Borges, o gasto primário da União (ou governo central) em 2023 será de 19% do PIB. Bráulio projeta que a receita líquida da União será nos próximos anos de 18,5% do PIB. Para um superávit de 1,5% do PIB, que, sob hipóteses muito otimistas, é suficiente para estabilizar a dívida pública, há um buraco fiscal de 2% do PIB, algo em torno de R$ 200 bilhões.
Assim, o pedido de Lula para o Congresso deve ser dessa ordem. Não sei como virá. Talvez impostos na distribuição de dividendos, incluindo as empresas que operam no lucro presumido e no Simples, impostos sobre grandes fortunas com os parâmetros aplicados na Espanha (arrecada algo como 0,3% do PIB), e, possivelmente, uma CPMF transitória enquanto a dívida estiver acima de certo limite. Tudo especulação da coluna. De qualquer forma, esse crescimento de receita terá que ser ‘limpinho’, como mencionado acima.
Será que não há espaço para queda do gasto primário da União a partir dos 19% de 2023? Segundo a coluna de Cláudia Safatle no jornal Valor em 3 de março último, o plano do governo é estabilizar o gasto primário da União como proporção do PIB por habitante. Dado que a receita de impostos cresce na velocidade do PIB absoluto, com a passagem do tempo, haveria redução do gasto em proporção do PIB. Como apontado pelo respeitado economista Fernando Montero, dado que o crescimento populacional hoje é de somente 0,6% ao ano, essa diluição ocorrerá muito lentamente. Segundo as contas de Monteiro, o gasto reduzir-se-á ao ritmo de 0,12 ponto percentual do PIB por ano.
Ou seja, voltando ao fio da meada que ficou solto da última coluna, segue a questão: o que ocorrerá se Lula pedir ao Congresso aumento da carga tributária e este recusar? Viveremos um impasse fiscal que, provavelmente, demandará uma política monetária de acomodação. Qual será a trajetória da economia nesse caso? A aposta da coluna é que haverá um lento processo de reinflação. Em 2026, a inflação será provavelmente ainda de um dígito, mas bem acima de 4%, mais para 7% ou 8% do que para 5%. A desinflação ocorrerá, se a nossa economia política permitir, no próximo mandato. Consequentemente, se de fato o Congresso não entregar a elevação de carga tributária necessária, o próximo presidente do Banco Central será alguém que acomodará e aceitará a dominância da política fiscal sobre a monetária.
Por que motivo a reinflação será lenta? Essencialmente devido à reservas cambiais tornarem o Brasil credor líquido em moeda estrangeira. Qualquer desvalorização do câmbio eleva o valor em reais das reservas, contribuindo para reduzir a dívida líquida das reservas. As reservas cambiais exercem forte papel amortecedor de choques econômicos.
A experiência histórica mostra que mesmo países com situação fiscal em ordem, se houver forte afrouxamento na política monetária, experimentarão lenta trajetória de reinflação.
Para ilustrar, vale acompanhar a trajetória de reinflação da Argentina nos governos Néstor e Cristina Kirchner entre maio de 2003 e novembro de 2015.[1]
Néstor Kirchner recebeu a economia do presidente Eduardo Duhalde relativamente arrumada, após a crise fortíssima com a saída do regime de convertibilidade do peso em dólares, implementada pelo ministro Domingos Cavallo. Entre 1999 e 2002, a economia argentina caiu 20%. No biênio terminado em 2002, a queda foi de 15%. Para se ter uma base de comparação, no biênio terminado em 2016 a economia brasileira caiu 6,5%.
Em 2003, a economia argentina estava pronta para um forte ciclo de crescimento. A base muito deprimida e o ciclo de commodities, além da colheita das reformas institucionais do ministro Domingos Cavallo, garantiriam um futuro radiante para os Kirchners.
As contas públicas estavam arrumadas. Houve superávit primário de 3,2% do PIB e os juros pagos foram de 1,7% do PIB, de sorte que o superávit das contas públicas foi de 1,5% do PIB. Após o surto inflacionário com o ajuste do câmbio, a inflação caiu para 4% em 2003.
De 2004 até 2009, as contas externas foram bastante bem. O crescimento da China ajudou o país, como ocorreu com o Brasil, de sorte que, em todos esses anos, houve superávit de transações correntes da ordem de 2% do PIB. Também houve forte superávit das contas públicas. O primário foi de 5% do PIB em 2004 e 2005 e lentamente caiu até 1,9% do PIB em 2008, ainda uma respeitável posição superavitária.
Apesar dos bons indicadores econômicos, a inflação, medida pelo deflator do PIB, a partir do nadir de 4% em 2003, elevou-se até 15% em 2009. A elevação foi causada por uma política monetária muito frouxa. O juro real médio praticado no interbancário argentino entre 2003 e 2008 foi negativo, em torno de -6% ao ano. Ou seja, o primeiro surto inflacionário ocorreu com juros muito baixos e uma posição fiscal bastante sólida.
A partir de 2009, já no governo Cristina, há um déficit primário de 0,5% do PIB que se eleva até 4,4% do PIB em 2015. O desarranjo fiscal reforça a política monetária muito frouxa. O deflator do PIB em 2015 foi de 27%. Os 13 anos de 2003 até 2015, de política macroeconômica muito frouxa, inflacionaram a economia argentina em 23 pontos percentuais, de 4% até 27%. Se considerarmos um aumento linear da inflação, ela elevou-se 1,9 ponto percentual por ano. Para o caso brasileiro, considerando IPCA de 4% em 2024, a inflação fecharia 2026 a 8%. É perfeitamente possível que seja abaixo desse valor. Certamente os juros praticados por aqui não serão tão baixos quanto os da Argentina.
A conclusão desse exercício simples é de que é perfeitamente possível, do ponto de vista do equilíbrio político da economia brasileira, um Banco Central que acomode a dominância fiscal e conviva com déficits primários da ordem de 1-2% por todo o mandato de Lula III. A reinflação será lenta e o problema ficará para o próximo mandatário.
[1] Mauricio Macri assim em 10 de dezembro de 2015.
Link da publicação: https://blogdoibre.fgv.br/posts/possivel-trajetoria-da-reinflacao
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