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Desastres ambientais, desigualdade e gentrificação

Folha

A tragédia que atingiu o município de São Sebastião há um mês evidencia o potencial destrutivo da combinação de desastres naturais com desigualdade social.

As chuvas que a provocaram foram as mais intensas já medidas no Brasil, mas não deveriam ter surpreendido a ninguém. Há uma profusão de dados e relatórios, como o Atlas da Organização Meteorológica Mundial da ONU, que demonstram o aumento em cinco vezes dessas ocorrências nos últimos 50 anos. Essa situação é irreversível e devemos nos adaptar a ela, enquanto sociedade, assim como individualmente nos adaptamos aos efeitos dos anos sobre o nosso corpo.

Diferentemente de nós, porém, a Terra não está irremediavelmente sujeita à degradação da idade e esse processo pode e deve ser interrompido através da cessação das emissões de gases de efeito estufa, objetivo que se tornou conhecido como “net zero”. Mas há um outro aspecto igualmente sério.

Os desastres naturais ocorrem com maior frequência nas regiões tropicais, onde o aquecimento adicional causa maior devastação e onde se situa a maior parte dos países pobres e emergentes. Nesses países, são os mais carentes as principais vítimas dos eventos climáticos.

No caso das praias do município de São Sebastião, a quase totalidade dos 64 mortos encontrava-se em áreas de risco nas encostas da Serra do Mar. Essa população, direta ou indiretamente, atua na prestação de serviços aos turistas e proprietários das casas e condomínios situados à beira-mar.

Há primeiramente que responsabilizar as autoridades. Xico Graziano, secretário do meio ambiente no governo José Serra, em artigo recente é taxativo: “É a política populista a grande responsável pelo desastre… Seus autores permitem, acobertam, quase sempre estimulam a construção de residências em territórios precários, ambientalmente frágeis… [são] vereadores, deputados, promotores, juízes, prefeitos. Não têm cor partidária, nem ideologia”.

Não há falta de leis proibindo construções em áreas de risco, mas, como todos sabemos, a mera existência da lei não garante seu cumprimento. Além da punição aos agentes públicos responsáveis pela inobservância dos códigos legais, é preciso criar mecanismos que facilitem a sua adoção. No caso das casas e condomínios de veraneio, por exemplo, creio ser razoável a criação de taxas específicas destinadas a financiar a construção e manutenção da infraestrutura de que farão uso, como a requerida para suprir as necessidades de habitação, educação e saúde da população que atenderá às suas demandas de serviços.

Podemos almejar ir além. Não é necessário ser especialista em urbanismo para constatar que a situação habitacional do país não apenas reflete a desigualdade econômica existente, como a agrava, ao reforçar as barreiras sociais e culturais que separam ricos e pobres no Brasil. Assim, a melhor infraestrutura, os melhores serviços, as melhores escolas e hospitais são localizadas nas áreas ricas das cidades, ampliando o desequilíbrio de oportunidades entre jovens pobres e ricos e aprofundando o fosso social que os separa.

Como gestor de empresas, sempre acreditei na meritocracia como forma de estimular o desempenho. Mas está claro para mim que não se pode falar em meritocracia autêntica onde não há igualdade de oportunidades.

Um obstáculo importante ao surgimento de bairros que abriguem uma maior diversidade social é a gentrificação, que pode ser definida como o processo através do qual a população de baixa renda de um bairro é forçada a sair à medida que um novo grupo afluente se instala na região, elevando os preços dos imóveis e serviços. Uma consulta na internet com a questão “como combater a gentrificação?” produz uma quantidade enorme de artigos de diversas entidades, demonstrando a enorme preocupação que o tema suscita nos países desenvolvidos.

A leitura dos artigos evidencia a complexidade do problema. Há muitos exemplos de soluções pontuais, especialmente nos EUA, nas quais entidades sem fins lucrativos adquirem propriedades em regiões ameaçadas de gentrificação e as oferecem à população local, limitando a possibilidade de venda, para evitar que migrem. Há também iniciativas como a de obrigar empreendedores imobiliários nessas regiões a oferecer uma certa quantidade de imóveis de baixo custo.

As soluções mais abrangentes, contudo, são baseadas em habitações públicas, oferecidas à população mediante critérios definidos. Viena, na Áustria, é citada como exemplo desse caso, tendo 62% de sua população vivendo em “moradias sociais”, construídas pela municipalidade ou por instituições sem fins lucrativos estritamente reguladas.

Em uma viagem recente a Copenhague, na Dinamarca, perguntei ao guia qual seria o preço de um apartamento em um grande condomínio em construção na área central. Sua resposta foi que dependia, pois a lei estabelece que os condomínios têm que oferecer imóveis de preços variados para estimular a diversidade social de seus moradores.

Há um mês, Portugal anunciou o fim do programa Golden Visa, que concede vistos de residência no país a estrangeiros que invistam na compra de imóveis. A razão foi a elevação no preço dos imóveis provocada pelo influxo de novos compradores, que dificulta o acesso a moradias pela população local.

Por trás da preocupação com a gentrificação está a crença de que a convivência com o diverso é uma poderosa ferramenta de desenvolvimento social e fortalecimento moral. No Brasil, há hoje uma série de escolas particulares de São Paulo ampliando o número de bolsas para alunos carentes e aplicando-se em apreender as melhores formas de trabalhar a sua inclusão.

Não nos iludamos, porém, em acreditar que este seja um caminho sem dificuldades e enormes resistências. Em junho deste ano completam-se quatro anos que o Projeto de Lei PIU Leopoldina tramita na Câmara Municipal, sem ser levado a votação. O projeto prevê a construção pela iniciativa privada de apartamentos para 853 famílias carentes, que já habitam na região —nas imediações do Ceasa— há muitos anos, em condições precárias. Os defensores do projeto acreditam que o principal obstáculo à sua aprovação seja a oposição ferrenha dos moradores de condomínios afluentes, construídos recentemente no bairro.

Estes, por sua vez, provavelmente temem que a falta de policiamento e negligência na aplicação da lei crie riscos e embaraços à sua circulação no bairro. Cabe ao Estado intervir e criar as condições para a convivência entre seus cidadãos, independentemente de sua condição social. Não será através da procrastinação de decisões que isto se dará.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2023/03/desastres-ambientais-desigualdade-e-gentrificacao.shtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Candido Bracher