O sistema político favorece o uso da política fiscal para expandir a demanda, não para contraí-la. Isso cabe aos BCs
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Quem aprecia história, análise de conjuntura, e da política econômica ganhou um belo presente no ano passado, o livro “A Monetary and Fiscal History of the United States, 1961-2021”, de Alan Blinder, professor da Universidade de Princeton, e um dos mais eminentes macroeconomistas das últimas décadas.
Blinder oferece um panorama histórico e analítico, focando na interação entre políticas monetária e fiscal, e nas condicionantes estabelecidas pelo cenário político. Ele também incorpora a evolução do debate acadêmico na narrativa, bem como minibiografias dos principais atores da trama.
Políticos preferem usar a política fiscal para expandir a demanda, não para contrair. O papel de vilão cabe aos BCs
O autor se descreve, de forma transparente, como um economista keynesiano, e não disfarça sua simpatia pelo partido Democrata. É o texto de um observador engajado, que teve importante experiência prática de política econômica, na Casa Branca (governo Clinton) de 1993 a 1994, e no Fed, como vice-presidente, na era Greenspan, entre 1994 e 1996.
Fica aparente no texto que a economia americana, a despeito de uma recorrente vulnerabilidade a turbulências financeiras, teve um desempenho excepcional nas últimas décadas. O livro inclui capítulos intitulados “A longa expansão dos anos oitenta”, “O longo boom dos anos noventa” a “A expansão recorde dos anos dez” (imagine a leitora os títulos de eventuais capítulos cobrindo esses mesmos períodos na economia brasileira).
Blinder começa sua narrativa no governo Kennedy, que, sob a égide do keynesianismo, implementou um corte de impostos com o objetivo explícito de estimular a demanda agregada e, assim, o crescimento. A narrativa termina com o combate aos efeitos econômicos da pandemia, no qual a política fiscal teve protagonismo. Mesmo depois desse último episódio, Blinder conclui que a grande diferença entre 1961 e 2021, do ponto de vista das atribuições dos instrumentos, é que hoje o peso da estabilização macroeconômica recai predominantemente sobre a política monetária, e não sobre a política fiscal.
O autor lembra os leitores que, na origem, o keynesianismo enxergava a política fiscal como um instrumento simétrico, análogo e complementar à política monetária, e que também poderia ser distendida (por cortes de impostos e/ou aumentos de gastos) ou apertada (com elevação de impostos e/ou corte de gastos) de acordo com o estágio do ciclo econômico. Mas o texto registra a progressiva erosão da flexibilidade da política fiscal, limitando o seu emprego de forma anticíclica.
Uma razão é operacional, alterar a postura de política monetária requer apenas a decisão de um comitê, já mudanças de política fiscal geralmente devem ser negociadas entre o Poder Executivo e o Parlamento, o que usualmente demanda tempo. Nas circunstâncias políticas dos EUA, caracterizadas por extrema polarização no eleitorado e no Congresso, conseguir maiorias suficientes para alterar a política fiscal tem sido trabalhoso e, quando uma (ou ambas) das casas do Congresso é controlada pelo partido de oposição, quase impossível – exceto em graves crises, como em 2008 e 2020.
Outra restrição relevante ao ativismo fiscal, até para os EUA, que detém o privilégio de imprimir a moeda de reserva global, tem sido o nível da dívida pública.
Há uma dificuldade adicional. Apesar do saudosismo entre certos economistas keynesianos em relação aos programas de obras do New Deal americano, alterações de impostos e, mais importante, políticas de transferência de renda, tendem a ser mais efetivas para atuar sobre a demanda agregada, em especial no curto prazo, do que projetos de investimento, que têm maturação bem mais demorada. Ocorre que políticos, em geral, têm historicamente resistido a reverter cortes de impostos e, com muito mais intensidade, a cortar programas de transferências, uma vez que estes tenham sido estabelecidos. Na prática, portanto, a política fiscal foi perdendo, nos EUA e em muitos outros lugares, o caráter simétrico da visão keynesiana original. Em suma, o sistema político favorece o uso da política fiscal para expandir a demanda, mas não para contraí-la. Cabe, assim, aos bancos centrais desempenhar o papel do vilão da história.
Note-se que Blinder diferencia processos de ajuste voltados para estabilizar a dívida pública e assegurar a solvência do Estado, que marcaram a política fiscal americana em vários momentos, em especial entre meados dos anos 1980 e a grande crise financeira de 2008-9, de alterações da política fiscal visando estabilizar a economia, que ele caracteriza como o ponto central da visão keynesiana.
O livro analisa detidamente a contração fiscal expansionista (e, portanto, anti-keynesiana) do governo Clinton. O plano original, anunciado em 1993, visava reduzir um déficit projetado para 1997 em US$ 140 bilhões, cerca de 1,6% do PIB na época. Apesar de impor um ajuste modesto nas etapas iniciais (o montante de economias previsto para 1994 era equivalente a apenas 0,5% do PIB), o plano foi desenhado de forma a ter elevada credibilidade: atacou tabus, introduzindo a taxação de benefícios sociais para a classe média alta; tentou aumentar a taxação da alta renda e dos combustíveis; não recorreu a inovações contábeis; utilizou as projeções macroeconômicas do CBO, independente, mais conservadoras, e não da própria equipe econômica.
O plano crível de ajuste fiscal levou a uma forte queda das taxas de juros longas, o que motivou uma aceleração do crescimento e da geração de empregos. A consequência política foi natural, uma fácil reeleição de Clinton. Note-se que, para gerar esse tipo de efeito, uma contração fiscal deve ter início quando as taxas longas estão inicialmente muito elevadas, o que era o caso dos EUA em 1993. Note-se também que, para adotar esse tipo de estratégia, como no caso da administração Clinton, é preciso acreditar em crescimento liderado pelo setor privado.
Finalmente, uma das principais conclusões do livro refere-se à autonomia dos bancos centrais. Blinder afirma que a maioria dos governos democráticos do mundo convergiu para o modelo de autonomia, de jure ou de facto. A autonomia de jure tardou a ocorrer no Brasil, mas sua aprovação nos alinha às melhores práticas de governança democrática. Segundo o autor, a visão dominante é que a autonomia do Fed contribuiu de forma valiosa para a excelente performance econômica dos EUA nas últimas décadas. Fica a referência.
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