Legado do pensador permanece referência incontestável na economia e desperta acaloradas discussões
Folha
[RESUMO] Nos 300 anos de seu nascimento, o legado e a reputação do filósofo Adam Smith permanecem intocados, escreve Eduardo Giannetti. Referência incontornável do pensamento econômico, Smith explicou em detalhes na obra que o projetou, “A Riqueza das Nações”, como a interação espontânea de indivíduos e empresas conduziu ao livre mercado que garante eficiência e bem-estar social, modelo corroborado pelas experiências do último século, mas que não prescinde totalmente de alguma intervenção do Estado.
O tempo decanta o passado. O meu orientador de doutorado na Universidade de Cambridge, Bob Rowthorn, costumava dizer que seu pai, morto há muito, parecia ficar mais inteligente a cada ano transcorrido.
Algo semelhante acontece na minha convivência com a obra de Adam Smith (1723-1790) . A cada vez que revisito os seus textos, e lá se vão 40 anos, maior o meu espanto e a minha admiração pelo seu gênio. Cresci com seus livros —e eles cresceram comigo.
Toda interpretação traz a marca do seu tempo e lugar. Na história do pensamento econômico, sua contribuição tem sido objeto de infindáveis releituras e atraiu críticas e aplausos, não raro por motivos opostos, vindos das mais diversas escolas: clássicos e marxistas; neoclássicos e marginalistas; anarco-libertários e neoliberais; institucionais e comportamentais.
Marx, por exemplo, propõe que se distinga o Adam Smith “exotérico” (popular e acessível ao público leigo) e o “esotérico” (apreciado apenas pelos conhecedores). Existem Smiths para todos os gostos e paladares.
Ao contemplarmos o labirinto de exegeses e tentativas de cooptá-lo, não há como negar a pertinência da observação de Jacob Viner, referindo-se à “Riqueza das Nações”, de que “vestígios de todos os tipos concebíveis de doutrina podem ser achados naquele mais ecumênico dos livros, e um economista que não possa citá-lo em favor de suas teses precisaria de fato possuir teorias muito peculiares”.
“A fama”, adverte o poeta Rilke, “é a quintessência dos mal-entendidos que se associam a um nome”. Ser grande é ser mal-entendido.
Adam Smith pouco publicou. O conjunto de sua produção intelectual abarca dois livros: “Teoria dos Sentimentos Morais” (publicado em 1759 e amplamente revisto na edição de 1790, ano de sua morte) e “A Riqueza das Nações” (1776); três artigos curtos em periódicos; dois conjuntos de anotações feitas por alunos de cursos proferidos em Glasgow e uma coletânea póstuma, os “Ensaios sobre Temas Filosóficos” (1795), encabeçada pela magnífica “História da Astronomia”, um ensaio de filosofia da ciência ilustrada pela história da física dos pré-socráticos a Newton e sobre o qual Schumpeter comentou, com razão, que “ninguém pode ter uma ideia adequada da estatura intelectual de Smith sem conhecer este ensaio”.
Embora exígua, a obra de Smith abriga enorme diversidade temática: assuntos que hoje se encontram espalhados por vários departamentos universitários, e que vão da ética, jurisprudência e economia até epistemologia, retórica e linguística.
Subjacente a essa diversidade, contudo, é possível identificar uma profunda unidade de tratamento teórico. Qualquer que fosse o objeto investigado, ele procurava sempre seguir uma estratégia bem definida de argumentação na apresentação dos resultados e oferecer um tipo específico de teoria explicativa dos fenômenos em tela.
Essa estratégia, batizada por ele de “método newtoniano”, segue uma sequência lógica. Primeiro, a introdução de um pequeno número de princípios básicos, familiares e autoevidentes (como a divisão do trabalho e a propensão à troca na economia, ou a “simpatia” e o “espectador imparcial” na ética) e, em seguida, a tentativa de explicar os fenômenos observáveis (como os preços das mercadorias e o crescimento econômico, ou a nossa propensão a aprovar ou condenar moralmente as ações dos demais), mostrando como estes derivam daqueles princípios originalmente enunciados.
O propósito do exercício é revelar com a máxima clareza como um grande número de fatos e eventos observáveis, coisas que à primeira vista poderiam parecer desconexas e até inconsistentes, pode ser reduzido a poucas classes de fenômenos (classificação), e estas, por sua vez, podem ser vistas e entendidas como o resultado da interação de um conjunto de princípios familiares (explicação).
Explicar, segundo Adam Smith, e na física não menos que na economia, é a arte de apaziguar a imaginação —a arte de render o desconhecido ao conhecido e, desse modo, mostrar como aquilo que nos parece estranho, intrigante ou surpreendente não passa, no fundo, do efeito de causas comuns, ou seja, algo inteligível à luz de princípios que nos são familiares.
Daí que a satisfação proporcionada por uma teoria científica bem construída seja, para ele, uma experiência análoga ao prazer da fruição de uma bela composição musical, como sugere no ensaio sobre as “artes imitativas” da coletânea póstuma:
“Quando contemplamos aquela imensa variedade de sons agradáveis e melodiosos, organizados e assimilados de acordo com a sua harmonia e sucessão, formando um sistema regular e completo, a mente na realidade experimenta não apenas um prazer sensível muito grande, mas também um prazer intelectual intenso, semelhante àquele que ela deriva ao contemplar um grande sistema em qualquer ciência”.
A surpresa frente ao desconhecido; o assombro que impele à procura de explicações e a admiração pelas soluções teóricas que, ao menos provisoriamente, mostram-se capazes de satisfazer o entendimento e apaziguar a nossa imaginação —são estes os princípios que, segundo Adam Smith, “motivam e dirigem as investigações filosóficas” e a busca do conhecimento.
O paralelo entre arte e ciência é revelador. As dimensões cognitiva e a estética andam juntas. Elas convergem no ponto de fuga do grande projeto iluminista: a descoberta da ordem onde parecia haver somente o caos.
Nenhum autor controla o destino e os usos da sua obra. Adam Smith julgava “Teoria dos Sentimentos Morais” o seu livro mais filosófico e importante. Vou além: aventuro-me a dizer que nenhum leitor que não se disponha a lê-lo estará em condições de entender e apreciar devidamente o seu tratado econômico.
Mas foi “A Riqueza das Nações” que, sem dúvida, projetou-o à posteridade: é graças à sua influência e ao seu dom singular de reatualizar-se e dizer coisas distintas a novas gerações de leitores que se celebram os 300 anos do seu autor.
Ao contrário do que muitos imaginam, Smith jamais se propôs a ser o profeta de uma nova era ou a inventar e criar do nada um novo sistema econômico, o livre mercado, para a humanidade.
O mercado regido pelo sistema de preços, ele argumentou, não é a criação inspirada de algum demiurgo intelectual em seu gabinete, mas fruto de um longo e incremental processo evolutivo por meio do qual foram se constituindo as regras que presidem a valoração dos bens e as trocas em uma sociedade baseada na divisão social do trabalho. Ele não é o resultado da intenção, mas sim da ação humana.
A melhor analogia é com a instituição da linguagem. Nunca existiu um gramático que nos primórdios tenha inventado e definido de antemão as regras que presidem as trocas verbais. A gramática da linguagem comum é fruto de um milenar processo de construção anônima e coletiva, e foi apenas muito tardiamente que os filólogos vieram a codificar e formalizar a sua complexa e sofisticada estrutura.
Quando aprende a falar, uma criança assimila, sem se dar conta, todo um conjunto de regras gramaticais e semânticas que mais tarde, ao entrar na escola, ela vai penar para inteirar-se de que sabe e utiliza.
Pois bem. O sistema de mercado, propõe Adam Smith, está para a economia como as regras gramaticais estão para a linguagem comum. Ele é a gramática da convivência na vida prática, dada a profunda dependência em que vivemos uns dos outros, na medida em que necessitamos dos resultados do trabalho de uma infinidade de pessoas anônimas a fim de saciar necessidades e desejos de consumo.
Estejamos ou não cientes disso, as trocas econômicas, tal como as verbais, obedecem a uma complexa e sofisticada estrutura, um “plano impremeditado”, que ninguém planejou. O mecanismo de formação dos preços funciona como a corrente de transmissão por meio da qual informações atualizadas são processadas e prontamente postas à disposição de produtores e consumidores.
A principal contribuição de Smith à ciência econômica foi mostrar em detalhe, nos capítulos iniciais da “Riqueza das Nações”, como a interação das atividades de um sem número de indivíduos e empresas, cada qual buscando apenas defender o que acredita ser o seu próprio interesse em um ambiente competitivo, conduz à formação de um sistema governado por mecanismos de autocorreção —um modelo homeostático regulado por feedback negativo, como se diria hoje—, capaz de garantir, por meio dos sinais de preço, uma alocação eficiente dos recursos produtivos (terra, capital e trabalho) e o aumento da riqueza social.
O surpreendente nisso tudo é que a aparente anarquia desse jogo descentralizado, onde milhões de pessoas agem e negociam por conta própria, sem ter ideia do que estão fazendo e decidindo as demais, não resulte no mais completo caos, como seria talvez razoável prever, mas em uma ordem espontânea, coerente e dotada de propriedades de eficiência (“a mão invisível”) e bem-estar material (“a riqueza das nações”) com efeitos benéficos para a sociedade.
O século 20 encarregou-se de corroborar, em larga medida, a descoberta de Smith. De um lado, a demonstração matemática rigorosa das propriedades benéficas do mercado competitivo, dadas certas premissas restritivas, foi formalizada pela teoria do equilíbrio geral de Arrow e Debreu.
Como lembrou Ronald Coase, com uma pitada de exagero, ao receber o Prêmio Nobel de Economia em 1991, “a principal atividade dos economistas desde a publicação da ‘Riqueza das Nações’ tem sido preencher as lacunas no sistema de Adam Smith, corrigir seus erros e tornar sua análise bem mais precisa”.
E, do lado prático, o veredicto do confronto histórico entre dois modelos polares, o mercado temperado pelo corretivo keynesiano e o planejamento central, deixou pouca margem à dúvida.
O desastre do comunismo, uma espécie de esperanto na economia, revela o acerto do alerta smithiano: “O político que tentasse dirigir as pessoas privadas na maneira como devem empregar seus capitais estaria não só se sobrecarregando da mais desnecessária atenção, mas assumindo uma autoridade que não poderia ser confiada não apenas a nenhuma pessoa isolada, mas a nenhum conselho ou Senado de qualquer espécie, e que jamais seria tão perigosa como nas mãos de alguém que tivesse a parvoíce e a presunção suficientes para alimentar a fantasia de que estivesse apto a exercê-la”.
Adam Smith era realista e pragmático. O livre mercado não era uma panaceia e não prescindia de ação e regulamentação do Estado, a começar pela administração da Justiça, para sua própria existência.
Do mercado de crédito ao de fretes marítimos e da oferta de educação básica à de bens públicos e infraestrutura, “A Riqueza das Nações” está repleta de exemplos mostrando como a ação governamental era necessária e bem-vinda, desde que feita com o devido cuidado, a fim de corrigir falhas e promover o crescimento e bem-estar.
Cético em relação aos políticos e ao poder das ideias, ele jamais supôs que suas teorias (ou quaisquer outras) pudessem algum dia governar o mundo ou mudar o rumo da história. A sua definição do político profissional —”esse animal insidioso e astuto cujas opiniões são governadas pela flutuação momentânea dos acontecimentos”— não parece ter perdido a atualidade.
O mercado era uma criatura da sociedade, não do Estado, e o motor da riqueza das nações não era nenhum governo ou economista iluminado, mas o desejo das pessoas comuns de “melhorar sua condição”. “Se uma nação não pudesse prosperar sem usufruir da perfeita liberdade e da perfeita justiça”, reagiu ele frente ao purismo doutrinário dos liberais franceses da escola fisiocrata, “não haveria em todo o mundo uma única nação que poderia ter prosperado”.
Nem por isso, entretanto, ele deixou de se opor à pletora de leis e políticas públicas —os “préstimos” e as “restrições” das práticas mercantilistas vigentes— que distorciam a lógica dos mercados, sacrificavam o poder de compra dos consumidores e prejudicavam o crescimento.
Essas práticas refletiam a captura do processo legislativo e político pelos interesses particulares e corporativistas de negociantes e grupos privados. Na consciência espontânea de qualquer empresário, o que é bom para o seu negócio é obviamente bom para todos.
“Gente do mesmo ramo de negócios”, afirmou ele, “raramente se encontra, até para entretenimento, sem que a conversa termine em alguma conspiração contra o público ou em conluio para elevar os preços”. No conflito entre o interesse privado, altamente vocal e concentrado, e o interesse público, mudo e difuso, os governantes tornavam-se presas fáceis ao apelo, ou coisa pior, dos primeiros. Na economia, as boas intenções podem causar mais danos que a má-fé.
As tentativas do governo de interferir, proteger, subsidiar e dirigir as atividades de empresas e indivíduos, a fim de obter resultados específicos, implicavam algum grau de distorção e acabavam, em muitos casos, gerando ineficiência, redução do bem-estar e efeitos inesperados que, por sua vez, terminavam não raro pegando de surpresa a própria autoridade estatal.
Ao tentar corrigir as falhas da interferência anterior, e assim eliminar os efeitos imprevistos gerados, o governo voltava a intervir, deflagrando uma espiral de intervenções que se autoalimenta. É a escalada intervencionista —um enredo por demais conhecido de nós brasileiros.
Mudam-se os tempos, mudam-se os desafios. No século 21, o mercado regido pelo sistema de preços vem sendo, e será cada vez mais, posto à prova pela presença de dois imperativos inadiáveis: a redução da desigualdade que vem se agravando a olhos vistos no mundo e o enfrentamento efetivo da mudança climática —um ponto cego da maior gravidade na gramática do sistema de preços tal como ele se constituiu e hoje ainda opera. A busca de respostas e o veredicto final estarão em pauta na celebração do quarto centenário.
Vivemos em tempos de expurgos e cancelamentos. Todavia, quando as estátuas e a reputação de quase todo o cânone ocidental tiverem sido abatidas no altar de uma anacrônica e obscurantista santimônia, como recentemente se deu com David Hume, seu amigo e colaborador no iluminismo escocês, o legado e a reputação de Adam Smith, ouso crer, permanecerão intocadas.
Tome-se, a título de exemplo e arremate, o seu juízo acerca da servidão a que foram submetidos os povos africanos pela crueldade e ganância dos conquistadores europeus na era colonial:
“Não existe um único negro da costa da África que não possua um grau de magnanimidade que a alma do seu sórdido senhor mal possa conceber. A fortuna nunca exerceu mais cruelmente seu império sobre os homens do que quando sujeitou essas nações de heróis ao rebotalho das masmorras da Europa, a pobres-diabos que não possuem nem as virtudes do país de onde vêm, nem as daqueles para onde vão, e cuja leviandade, brutalidade e baixeza os expõem tão justamente ao desprezo dos vencidos”.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/05/genio-de-adam-smith-ainda-espanta-nos-300-anos-de-seu-nascimento.shtml
As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.