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John Henry e a inteligência artificial

Folha

Há compositores cujas músicas oferecem uma perspectiva profunda sobre si mesmos e sobre seu universo. Um dos meus preferidos é Johnny Cash.

A infância de Cash foi marcada pelo árduo cotidiano de uma pequena plantação de algodão no sul dos EUA, no difícil período que se seguiu à crise de 1929. Tendo superado inúmeros reveses na vida, muitas de suas músicas revelam empatia por homens que não tiveram a mesma sorte.

Cantou a história de Ira Hayes, um nativo americano que aparece no famoso retrato em que seis fuzileiros navais fincam a bandeira americana ao final da batalha de Iwo Jima e que morreu alcoólatra dez anos depois, incapaz de se adaptar à vida sem perspectivas na reserva indígena. Cash também se apresentou nos presídios de Folsom Prison e San Quentin, dedicando músicas aos presidiários.

Uma de suas canções mais icônicas, “The Legend of John Henry’s Hammer”, conta a história de um trabalhador negro na construção de ferrovias no final do século 19, que era o mais rápido e potente com sua marreta, fincando cravos na pedra para a abertura de túneis, até que a companhia trouxe um compressor a vapor para realizar o trabalho. John Henry não se conforma e desafia a máquina para uma competição em que sai vencedor, mas morre de exaustão no dia seguinte.

Lembrei-me da música há poucos dias, quando recebi em um grupo de WhatsApp um filme promocional de uma nova ferramenta da Microsoft, o Copilot, que combina a inteligência artificial (IA) generativa do GPT-4 com os diversos aplicativos da empresa.

Grande parêntese: IA generativa é uma categoria de inteligência artificial capaz de gerar novos dados, como textos, imagens e tabelas, semelhantes aos dados com que foram treinados. Nem o espaço desta coluna nem meus conhecimentos permitem uma explicação clara sobre o funcionamento da IA generativa, mas colhi algumas informações que valem ser compartilhadas.

1) A IA generativa funciona a partir de “modelos de linguagem de grande escala” (LLM, na sigla em inglês). Dada uma sequência de palavras, o modelo seleciona a palavra com maior probabilidade de ser a próxima na sequência.

2) Curiosidade: em 1913, o matemático russo Markov foi precursor da técnica, baseando-se na análise estatística do romance “Ievguêni Oniéguin”, de Púchkin, considerado pai da moderna literatura russa.

3) Diferentemente dos sistemas tradicionais de computadores, nos quais o programador conhece perfeitamente o processo através do qual os dados introduzidos geram determinados resultados, os sistemas de LLM não são exatamente “programados”, mas sim “nutridos”. Ao adicionar poder de processamento ou dados, altera-se significativamente o comportamento do sistema, sem que os programadores saibam explicar como isso se deu.

Enfatizando sempre que o objetivo é liberar o executivo das funções mecânicas e repetitivas, para que ele tenha mais tempo para se dedicar às funções que realmente exigem criatividade, o filme descreve como o Copilot poderá desempenhar uma série de tarefas que eu costumava considerar partes importantes do meu trabalho de executivo. Usando apenas “linguagem natural” —isto é, a língua que falamos—, o programa poderá, por exemplo, resumir nossas reuniões virtuais, correlacionando os assuntos discutidos com nossa agenda, emails, chats, contatos e documentos e preparar textos e materiais dirigidos à nossa equipe, superiores, ou clientes, contendo instruções e informações necessárias para o seu cumprimento.

É claro que a decisão final fica sempre com o profissional, que pode aceitar ou não as sugestões recebidas, ou pedir aprimoramentos. Mas boa parte das iniciativas que costumavam ser fatores diferenciadores de desempenho de executivos poderá ser agora sugerida e automatizada pela inteligência artificial. E todos sabemos que isso é apenas o início. Não fiquei surpreso que a música sobre John Henry, que havia muitos anos eu não ouvia, me tenha vindo à mente espontaneamente. A surpresa deve-se ao fato de que desta vez não são trabalhadores braçais que veem suas atividades ameaçadas de obsolescência em razão do progresso tecnológico, nem mesmo casos pontuais, como atores de cinema mudo, ou campeões de xadrez.

Agora o fenômeno é generalizado para profissionais com “formação superior” como médicos, advogados, engenheiros, executivos e até mesmo escritores; parte relevante das atividades hoje desempenhadas por esses profissionais poderá ser executada com mais qualidade e velocidade pela nova tecnologia.

Grandes mudanças provocam reações, e não tem sido diferente com programas como o GPT-4. No mês passado, mais de mil especialistas em IA e líderes do setor de tecnologia assinaram um manifesto exigindo uma pausa de ao menos seis meses no desenvolvimento de programas baseados na nova tecnologia, para conceder tempo para a elaboração de um arcabouço normativo capaz de proteger dos “profundos riscos para a sociedade e humanidade” apresentados pela IA generativa.

Yuval Harari, um dos signatários, acentua que “é preciso ganhar tempo para modernizar nossas instituições do século 19 para um mundo com inteligência artificial; e aprender a dominá-la antes que ela nos domine”.

Henry Kissinger se junta ao coro: “Sistemas de inteligência artificial com o poder do GPT-4 e além não deveriam ser emaranhados às vidas de bilhões de pessoas a um ritmo mais veloz do que as culturas sejam capazes de absorvê-los com segurança”.

Nem todos, porém, demonstram o mesmo receio. Steven Pinker, professor de psicologia em Harvard e um renomado estudioso do funcionamento da mente humana, acredita que a nova tecnologia apenas expande os limites do nosso cérebro, assim como nos anos 1960 os computadores ampliaram nossa capacidade de cálculo e contabilidade, ou a habilidade de buscar informações nos anos 1990. Bill Gates é outro que diz não acreditar que uma pausa no desenvolvimento possa funcionar globalmente.

Eu, que sei muito menos do que todos eles, tenho muitas dúvidas. É claro que me assusto com a perspectiva do desenvolvimento irrestrito de sistemas cujo mecanismo de funcionamento não é plenamente compreendido sequer por seus idealizadores. Por outro lado, acho fundamental examinarmos intimamente se nossas resistências à IA generativa não se originam principalmente em uma atitude protecionista que nós, universitários, adotamos diante de uma tecnologia que ameaça a segurança de nossos empregos.

Nós, que aceitamos como efeitos colaterais toleráveis a obsolescência de trabalhadores braçais como John Henry nos inúmeros casos de automatização que testemunhamos em nosso tempo de vida, estaríamos reagindo de outra forma quando a “vítima” somos nós?

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2023/05/john-henry-e-a-inteligencia-artificial.shtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Candido Bracher