O Brasil ainda é um dos países com a maior desigualdade de renda no mundo. Aqui, as experiências na infância são marcadas por desigualdades associadas à raça/cor, gênero, local de moradia, região de origem, religião e outros fatores e contextos em que as crianças nascem e vivem
Naercio Menezes Filho e Marcia Castro
Nexo Políticas Públicas
A primeira infância é um período crucial do ciclo da vida das pessoas, em que são constituídos os seus padrões de desenvolvimento físico, emocional, intelectual e social. É neste período que muitas crianças brasileiras de famílias mais vulneráveis apresentam os maiores riscos de mortalidade infantil, desnutrição crônica e atrasos de desenvolvimento, que podem levar à baixa escolaridade e gravidez na adolescência e perda de capital humano para o país.
O Brasil ainda é um dos países com a maior desigualdade de renda no mundo. Aqui, as experiências na infância são marcadas por desigualdades associadas à raça/cor, gênero, local de moradia, região de origem, religião e outros fatores e contextos em que as crianças nascem e vivem. Crianças pequenas em situação de pobreza extrema estão mais expostas a fatores adversos para o seu desenvolvimento, que incluem o estresse familiar, o abuso ou negligência dos cuidadores, a insegurança alimentar e a exposição à violência. Essas desigualdades também se refletem nas diferentes condições de vida, como acesso ao saneamento básico, tipo de moradia, exposição à poluição, assim como nas oportunidades de acesso e utilização de serviços de saúde, educação e assistência social.
A primeira infância é um período crucial do ciclo da vida das pessoas, em que são constituídos os seus padrões de desenvolvimento físico, emocional, intelectual e social
Nos últimos cinco anos, observamos grandes retrocessos em várias das políticas públicas necessárias para reduzir as desigualdades no desenvolvimento infantil, tanto devido à gestão ruim do governo federal, como pelos efeitos da pandemia de covid-19. Recentemente, o NCPI (Núcleo Ciência pela Infância) lançou um working paper destacando a evolução recente das desigualdades na primeira infância, com o título “Impactos da Desigualdade na Primeira Infância”). Destacamos aqui alguns dos principais resultados.
Atualmente, apenas 26% das crianças de 0 a 3 anos entre as famílias mais pobres estão matriculadas na creche, ao passo que entre as famílias com maior renda esse número salta para 55%. Todas as crianças foram afetadas negativamente pela interrupção das atividades presenciais na pré-escola, independentemente do perfil socioeconômico das famílias. No entanto, as crianças em situação de maior vulnerabilidade social foram as mais prejudicadas. Um estudo realizado na rede pública municipal da cidade de Sobral (Ceará), por exemplo, mostra que durante o ano de 2020 as crianças em situação de maior vulnerabilidade social aprenderam, em média, apenas a metade do que as demais.
As desigualdades se acentuaram também no mercado de trabalho. As figuras abaixo mostram as diferenças na taxa de inatividade entre os pais de crianças na primeira infância, por escolaridade e por região do país. A taxa de inatividade é medida pela proporção de pais que não trabalham nem procuram emprego entre os que estão em idade ativa. Podemos notar que a inatividade entre os menos escolarizados aumentou de 35% em 2021 para 40% em 2022, ao passo que entre os mais escolarizados ela diminuiu de 28% para 24%. Assim, o diferencial entre de inatividade por educação aumentou de 7 pontos percentuais para 16 pontos percentuais. Além disto, a taxa de inatividade aumentou bastante durante a pandemia para ambos os grupos.
A taxa de inatividade dos pais de crianças pequenas na região Nordeste aumentou de 37% para 41%, ao passo que na região Sudeste, ela diminuiu de 33% para 26%. Assim, o diferencial entre as regiões Nordeste e Sudeste, que era de 4 pontos percentuais em 2001 passou para 15 pontos percentuais em 2022. Ou seja: o Brasil ficou mais desigual em termos regionais e sociais, com um forte aumento da desigualdade do trabalho dos pais, que é um componente importante da desigualdade de renda familiar per capita.
Com relação à saúde, a cobertura vacinal no país vem caindo de maneira preocupante nos últimos anos, deixando especialmente a população infantil mais vulnerável a doenças que apresentam maior chance de causar sequelas e mortes. Nos últimos anos, os índices de imunização contra sarampo, caxumba e rubéola, através da vacina tríplice viral, caíram de 79,9% em 2015 para 62,8% em 2020, enquanto a imunização contra a poliomielite passou de 98,3% para 76,1% no mesmo período. Essa tendência de queda na cobertura vacinal se agravou durante a pandemia da covid-19, devido à menor procura dos serviços de saúde, ao movimento antivacina, ao aumento da disseminação de informações falsas (fake news) sobre efeitos adversos da imunização, e à diminuição dos investimentos no PNI (Programa Nacional de Imunizações).
Em termos de políticas públicas, o desempenho nos últimos anos foi decepcionante. O Programa Mais Médicos, criado em 2013, tinha o objetivo de expandir a oferta de serviços da atenção primária por meio da contratação de profissionais para atuarem em municípios do interior e nas periferias das grandes cidades do Brasil. No entanto, em vários municípios houve saída de profissionais sem sua devida substituição. Na educação, várias políticas foram paralisadas, incluindo a área de avaliação educacional.
Nos últimos cinco anos, observamos grandes retrocessos em várias das políticas públicas necessárias para reduzir as desigualdades no desenvolvimento infantil, tanto devido à gestão ruim do governo federal, como pelos efeitos da pandemia de covid-19
O que fazer daqui para a frente? Em 2015, a PNAISC (Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança) apontou estratégias e dispositivos para articular ações e serviços de saúde. Dentre os eixos estratégicos desta política destacam-se: aleitamento materno e alimentação complementar saudável (introdução de alimentos sólidos na alimentação da criança), promoção e acompanhamento do crescimento e desenvolvimento integral; atenção a problemas prevalentes na infância, a doenças crônicas e a crianças com deficiência ou em situações específicas de vulnerabilidade além de vigilância e prevenção de mortes infantis, fetais e maternas.
Junto a outros documentos estratégicos e programas sociais, a PNAISC tem orientado ações setoriais e intersetoriais, considerando a importância do combate às desigualdades em saúde e da promoção da equidade, reconhecendo as diferenças sociais entre os grupos e atuando sobre elas visando à promoção e manutenção da saúde, para que todas as crianças possam usufruir do seu pleno potencial de crescimento e desenvolvimento, sem serem privadas de seus direitos fundamentais.
Neste sentido, será necessário retomar as políticas preconizadas pela PNAISC. Além disto, políticas públicas urgentes incluem fazer busca ativa das crianças em idade de frequentar creche, aumentar o número de vagas, fortalecer a atenção básica, fazer uma avaliação nacional do aprendizado e da saúde mental das crianças, retomar o orçamento e as campanhas do programa nacional de imunização, reforçar o programa saúde da família e continuar aperfeiçoando o programa bolsa-família, para alcançar as famílias que ficaram pobres durante a pandemia.
Naercio Menezes Filho é professor titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper, professor associado da FEA-USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e Diretor do CPAPI. (email: naercioamf@insper.edu.br)
Marcia Castro é professora titular de Demografia da Cátedra Andelot na Harvard TH Chan School of Public Health, Diretora do Programa de Estudos do Brasil na Universidade de Harvard, e membra da Academia Brasileira de Ciências. (email: mcastro@hsph.harvard.edu)
Link da publicação: https://pp.nexojornal.com.br/ponto-de-vista/2023/Desigualdades-na-primeira-inf%C3%A2ncia
As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.