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E se a inflação cai?

Combinação de evolução benigna de vários preços, apreciação cambial e provável ratificação da meta de inflação poderia promover reavaliação das expectativas de inflação

Valor

A economia brasileira se caracteriza hoje por um menor ritmo da inflação e algum crescimento da atividade econômica. O impulso fiscal de 2022, transformado parcialmente em gastos estruturais, tem afastado, com o auxílio das boas safras e moderação do preço das commodities, o quadro de estagflação predito por alguns na virada do ano. O aumento das transferências de renda em 1 ponto percentual (p.p.) do PIB, prenunciado na Mensagem ao Congresso enviada em agosto passado e ratificado pela PEC da Transição tem dado fôlego à população de mais baixa renda. As commodities, por seu lado, vem se acomodando em níveis que dão conforto às contas externas, mas ajudam a baixar os preços da alimentação.

O quadro externo e meteorológico hoje é favorável ao Brasil, em contraste com 2015, quando a alta do dólar, a forte queda dos preços das commodities e uma severa seca conspiraram contra o crescimento econômico e a estabilidade de preços. A tendência do dólar agora é de queda ao redor do mundo, ampliada no Brasil pelas boas safras, o fim do ciclo de desalavancagem externa de nossas empresas e termos de troca ainda confortáveis, enquanto o Banco Central (BC) adotou a “bandeira verde” de abundância de água nos cenários centrais de 2023-24.

Inflação cadente, fiscal aprumado e investimento em alta seria excelente augúrio para presidência do G-20 pelo Brasil

Analistas como Fernando Montero, com quem trabalhei na Fazenda há mais de 20 anos, comparam a atual situação com aquela aproveitada pelo governo Temer, quando uma grande safra e o alívio cambial baixaram o preço dos alimentos, trazendo desinflação e maior poder de compra para a população, ampliando o consumo e o PIB.

A excelente safra do começo de 2023 e a boa perspectiva para a “safrinha” são um choque de oferta positivo, com efeito multiplicador em outros setores. O transporte de cargas tem sido uma das estrelas do crescimento nas pesquisas de serviços e o diesel vem puxando os combustíveis nas de consumo. O efeito líquido dessa propagação da renda não parece ser altista para a inflação, face à redução do preço dos alimentos.

Aos efeitos baixistas da safra tem se somado a persistente queda dos preços dos produtos industriais no atacado (IPA), que trouxe o IGP-M ao território negativo. Essa queda decorre de efeitos globais de oferta e demanda, refletidos nos preços dos fretes internacionais, circuitos impressos, etc.. Ela se transmite gradualmente aos preços ao consumidor dos bens duráveis e semiduráveis, de forma parecida ao que se passa nos EUA e em outras economias.

Ao contrário dos EUA, o rendimento do trabalho no Brasil ainda não teve crescimento real expressivo em relação ao período pré-pandemia, com a renda do trabalho como proporção do PIB vindo até agora abaixo de 2019. A recuperação gradual, mas atrasada, do rendimento do trabalho vem contribuindo para os aumentos de preços dos serviços intensivos em mão de obra no IPCA, com a inflação anualizada de serviços subjacentes na ponta perto de 5,5%, contra os 3,5%-4% em 2017-18, quando a Selic já havia mergulhado.

Não se presume que essa recuperação seja prejudicial, mas se sabe que realinhamentos de preços pressionam a inflação, já que a deflação ao consumidor é rara, mesma quando os preços no atacado caem. Essa rigidez baixista é que motiva as metas de inflação não serem zero.

No Brasil, a percepção de os choques nos preços serem grandes, inclusive via câmbio, e os realinhamentos serem lentos motivou a banda de tolerância ao redor da meta. O BC descumpre seu mandato quando a inflação sai dessa banda, levando-o a sempre avaliar os riscos dessa ultrapassagem. No final de 2022, ele avaliava que a chance da inflação sair da banda em 2024 era de 15%, valor que subiu em março, pela maior tributação dos combustíveis e, intui-se, pela aparente desancoragem das expectativas de inflação.

A desancoragem das expectativas é subjetiva, tendo o BC se indagado se ela vinha da sua leniência ou de outros fatores. Alguns observadores estimam que ela cresceu com a discussão depois que o governo especulou no começo do ano se a eventual mudança do centro da banda nos anos vindouros seria a resposta mais adequada a uma política monetária comprometida com alcançar o centro dessa banda (a “meta”) já em 2024, independente da inércia dos preços dos serviços.

Sendo assim, a combinação da atual evolução benigna de muitos preços – apesar do impacto da necessária volta dos tributos sobre combustíveis e energia – com a modesta apreciação do câmbio e a provável ratificação da meta de inflação para 2024 e 2025 abaixo de 3,5%, poderia promover uma reavaliação das expectativas de inflação, facilitando o relaxamento da política monetária.

O Banco Central menciona nas suas atas que, a despeito da migração das expectativas de inflação de 2024 no Focus para 4%-4,2%, seus modelos usando as curvas de juros também do Focus indicam uma projeção de inflação para 2024 perto de 3,5%. O confronto com os modelos pode ser uma das razões do mercado continuar a se antecipar à sinalização explícita do BC, apostando na Selic a 12% no final de 2023 e mesmo de um dígito em 2024, o que seria ajudado por um eventual corte dos juros americanos nos próximos 9 meses.

Em suma, em face ao grande desafio de financiar um aumento permanente de despesas de mais de 1 p.p. do PIB decorrente da dinâmica política e congressual de 2022, inclusive da garantia de execução das emendas parlamentares e do piso de enfermagem, o governo tem se esforçado para limitar o déficit primário em 2023 e acena com zerá-lo ainda em 2024. Esses objetivos serão difíceis de alcançar se, à disciplina no gasto, melhora da inflação e relativo conforto das contas externas não se somar um salto do investimento privado, que facilite levar o crescimento médio da economia para 2,5% ao ano.

A possibilidade da tríade composta de inflação cadente, fiscal aprumado e investimento ascendente ainda cativa os investidores externos, especialmente em vista do progresso no tema ambiental e da transição energética. Sua realização não é garantida, mas seria um excelente augúrio para a presidência brasileira do G-20 que começa em poucos meses.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/e-se-a-inflacao-cai.ghtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Joaquim Levy