Mudança dessa envergadura gera incertezas, mas seus benefícios superarão largamente eventuais custos
Folha
A leitora e o leitor sabem que a reforma tributária está na ordem do dia. Trata-se de uma urgência nacional. Algumas críticas que vieram ao debate público nos últimos dias são simplesmente improcedentes. Na Ilustríssima da semana passada diversos autores publicaram artigo com fortes críticas à proposta de emenda Constitucional (PEC) de reforma tributária em tramitação no Congresso Nacional.
Nesse artigo apresentamos uma defesa da reforma. Argumento que as críticas são improcedentes.
Antes, porém, é necessário apresentar o teor da reforma. O artigo está organizado em seis seções. Na próxima seção apresentamos o conceito de Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA). Na segunda seção exponho a situação atual e seus problemas. Na terceira o caminho que nos trouxe até aqui. Na quarta seção o novo imposto e na quinta a transição requerida para a efetivação da reforma. Na sexta seção respondo aos críticos da reforma. Segue uma rápida conclusão.
1. IMPOSTO SOBRE O VALOR ADICIONADO
O Estado requer receita para se financiar. Evidentemente as pessoas não gostam de pagar imposto. Uma base tributária essencial em qualquer sociedade é o consumo. A grande dificuldade é que temos quase duas centenas de milhões de consumidores. Há muito menos empresas. Assim, a partir dos anos 1950, diversos países passaram a empregar as empresas como agentes da receita. A ideia é que cada unidade produtiva recolheria um imposto referente à sua parcela da produção do bem de consumo.
O IVA é um imposto simples. A empresa paga uma alíquota sobre a suas vendas —o seu faturamento— e recebe um crédito da mesma alíquota sobre o valor da compra de matérias-primas e bens intermediários. Os créditos e débitos nos diversos elos da cadeia produtiva reduzem em muito o custo para o Fisco da fiscalização. Os próprios produtores fiscalizam seus fornecedores.
Adicionalmente, o IVA é um imposto neutro em relação à organização da produção. Isto é, o imposto pago será o mesmo quer uma etapa da produção ocorra no interior da empresa, isto é, seja verticalizada, ou se será adquirida no mercado, isto é, será terceirizada.
A explicação é simples, mas demanda um pouco de paciência. Quem não tiver interessado na tecnicidade pode pular os próximos parágrafos e ir direto para a próxima seção.
Suponha que a alíquota de imposto sobre o valor adicionado seja de 25%. E suponha que a produção e venda de refrigerante em lata ocorra em três etapas. Vale acompanhar os passos com os dados da tabela abaixo.
Na primeira etapa uma produtora de alumínio a partir da bauxita produz latas de alumínio ao preço de 100. Não há nenhuma aquisição de matéria-prima visto que a empresa é proprietária da mina de bauxita (por isso temos 0 na linha “Etapa 1” e coluna “Insumo”). A empresa vende as latas de alumínio para a engarrafadora do refrigerante. O saldo da primeira empresa (veja linha “Etapa 1” na tabela) foi: produziu e vendeu latas de alumínio no valor de 100 e recolheu IVA no valor de 25 (coluna “IVA débito”).
Na segunda etapa a engarrafadora pagou 125 pelas latas de alumínio, sendo 100 para a produtora da lata (veja linha “Etapa 2” coluna “Insumo”) e 25 para o Fisco (linha “Etapa 2” e coluna “IVA crédito”), produziu refrigerante no valor de 200 e vendeu para o varejo por 250. Recolheu 50 de IVA (linha “Etapa 2” e coluna “IVA débito”) e tem crédito dos 25 que foram pagos na compra das latinhas.
Na terceira etapa a engarrafadora, como vimos, vende para o varejo. O varejista pagou 250 pelos refrigerantes, 200 para a engarrafadora e 50 que foram recolhidos para o Fisco na etapa anterior pela engarrafadora. Adicionalmente, o varejista vendeu o refrigerante ao público por 375, sendo que sua receita foi de 300 e pagou 75 para o Fisco. Os 50 de IVA que foram retidos na etapa anterior constituem um crédito do varejista (veja o balanço na linha “Etapa 3”). O consumidor pagou 300 ao varejista pelos refrigerantes e 75 ao fisco. Se somarmos o saldo IVA nas três etapas obtemos exatamente os 75 pagos pelo consumidor ao fisco (ver coluna “Saldo IVA recolhido”).
VA | Insumo | IVA débito | IVA crédito | Saldo IVA recolhido | |
Etapa 1 | 100 | 0 | 25 | 0 | 25 |
Etapa 2 | 100 | 100 | 50 | 25 | 25 |
Etapa 3 | 100 | 200 | 75 | 50 | 25 |
Se o varejista exportar o refrigerante ele não pagará o imposto de 75 e terá um crédito a receber de 50. A exportação será de 300. Não incide imposto na exportação.
Suponha que um outro varejista seja dono de uma mina de bauxita, de uma fábrica que produza a lata de alumínio e de uma engarrafadora, isto é, ele produz internamente do alumínio até a venda do refrigerante ao consumidor final. Se sob esta produção totalmente verticalizada o valor da produção for 300, o imposto pago será também 75. É nesse sentido que um IVA não afeta a organização da produção. A verticalização ou a terceirização serão adotadas em função exclusivamente da eficiência produtiva.
2. NOSSO IMPOSTO HOJE
Hoje as empresas que produzem serviços recolhem para os municípios o Imposto sobre Serviços (ISS) em função do faturamento e não do valor adicionado. O consumo de bens intermediários não é deduzido, isto é, não gera crédito.
Os estados, por sua vez, tributam a produção de mercadorias por meio do imposto sobre circulação de mercadorias, o ICMS. O crédito gerado é físico e não financeiro, isto é, somente gera crédito a aquisição de bens que serão diretamente empregados na produção. Gastos com energia elétrica no escritório e todos os custos relacionados a atividades administrativas, bem como serviços terceirizados, diretamente ou não ligados à produção —como segurança, alimentação, transporte, pintura e outros— não geram créditos.
Há uma zona cinzenta importante: bens que são destruídos no processo produtivo, como componentes químicos, mas que não integram fisicamente o bem final, geram ou não crédito?
Nota-se a enorme confusão em nosso sistema: o ISS cobrado dos serviços não gera crédito. O custo para uma empresa em terceirizar atividades é muito alto: ao terceirizar um serviço a empresa passa a pagar ISS sobre o serviço que não será cobrado se a atividade se mantiver verticalizada, pois, como vimos, os serviços não geram crédito. Depois não sabemos o motivo de nossa indústria de transformação não ser competitiva.
Nos anos 1990, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, as obrigações da União com a gestão de boa parcela do Estado de bem-estar brasileiro cresceram. Os gastos com seguro-desemprego, aposentadoria urbana e rural, SUS (Sistema Único de Saúde) e com os benefícios não contributivos da seguridade federal aumentaram muito. Foi necessário que a União avançasse sobre a base tributária do consumo.
A contribuição para o Programa de Integração Social (PIS), criado em 1970, foi adaptada para financiar o seguro-desemprego e o abono salarial e criou-se a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins).
O PIS/Cofins incide sobre a produção e em alguns casos gera crédito, em geral para bens intermediários, e em outros não gera crédito, em geral em serviços. Como a lei define que toda a aquisição de bens empregados diretamente na produção gera crédito, insumos que são destruídos ou transformados na produção, como componentes químicos, geram crédito, diferentemente do que ocorre no ICMS.
Mesmo assim há muitas zonas cinzentas. É comum, por exemplo, a Receita Federal não considerar equipamento de segurança dos trabalhadores como bem que participa diretamente da produção. Evidentemente o sistema é muito complexo.
Convido agora você, leitora e leitor, a um exercício simples: leia em voz alta este parágrafo aqui, a partir da próxima frase.
Somente a lei do PIS/Cofins tem mais de 80 regimes especiais. O ICMS de somente um único estado tem 15 alíquotas, 41 hipóteses de crédito presumido, 61 hipóteses de redução da base de cálculo, 82 hipóteses de diferimento, 233 isenções (envolvendo milhares de itens) e milhares de regimes especiais de tributação. Somente o regulamento do ICMS em Minas Gerais tem mais de mil páginas. A legislação da Cofins tem mais de 1.200 páginas.
Ufa. O nosso sistema tributário cansa já na leitura de um parágrafo, imagine, então, lidar com ele todos os dias. Têm sido divulgados na imprensa inúmeros casos pitorescos de reclassificação de bens —sorvete de fast food é sorvete ou sobremesa? Sonho de Valsa é bombom ou biscoito? Os casos se avolumam.
Além da enorme complexidade dos impostos indiretos alterar a decisão de produção, como vimos no caso da terceirização (ou não) de atividades, ela requer que as empresas tenham departamentos contábeis hipertrofiados para processar o pagamento dos impostos.
Uma empresa que produza um bem e o venda para os 26 estados da federação brasileira precisa ter contadores entrando diariamente no site de cada uma das secretarias da Fazenda estaduais para conhecer as novas normas. Todos os dias, todas as semanas, todos os meses, ano após ano. Pense na quantidade de tempo que a sociedade desperdiça com isso.
A complexidade também gera inúmeras divergências de interpretação entre a Receitas Federal, as receitas estaduais e as empresas. Essas questões batem no Carf na esfera administrativa e, em seguida, entulham nosso Judiciário com inúmeras pendências tributárias. Em cada esquina de nossas cidades há um escritório especializado em direito tributário para auxiliar as empresas a conviver com o elevadíssimo nível de litigiosidade de nossa tributação.
Nossos impostos também induzem que o investimento não seja feito nos locais cujo retorno social seja maior. Quando um bem é produzido em um estado e vendido em outro, parte da receita de ICMS fica no estado de origem. Há décadas ocorre a guerra fiscal. Um estado promete para uma empresa que se ela lá se instalar haverá redução do pagamento do ICMS. No entanto, permite que a empresa emita uma nota como se tivesse pago o imposto. Assim, quando o produto chega no seu destino em outro estado a empresa compradora receberá um crédito de um imposto que não foi pago! Trata-se de bondade com o chapéu alheio.
Isto agrava o problema da má alocação do investimento e da produção. A decisão de investir e de produzir deixa de atender a uma lógica de retorno econômico e passa a depender da estrutura tributária. É comum caminhão em trânsito pelo Brasil afora carregando bens por arbitragem tributária.
3. COMO CHEGAMOS ATÉ AQUI?
A lei que instituiu o ICM (posteriormente convertido no ICMS) é de 1966. Fomos pioneiros. Naquela época os serviços para as empresas eram ofertados internamente. Vigorava grande verticalização da produção. Há um famoso mural no Instituto de Arte de Detroit, executado pelo artista mexicano Diego Rivera em 1932-1933, em que apresenta uma planta estilizada da Chrysler. Em uma ponta entrava minério de ferro e na outra ponta saíam automóveis!
Desta forma, no Brasil nos anos 1960, os serviços eram vistos como atividades não industriais, localizadas no espaço urbano, para a oferta diretamente ao consumidor final. Eram os serviços educacionais e de saúde, de reparo de eletrodomésticos e de automóveis etc. Fazia, portanto, algum sentido —apesar de ser uma visão à época já defasada— deixar a base dos serviços para os municípios e a base da indústria para os estados. A lei que criou o ISS é de 1968 –dois anos após a criação do ICM. Importante frisar: o grosso dos serviços empresariais era realizado dentro das fábricas e compunha a base do ICM.
Como já vimos, as alterações da organização da produção da indústria, com vistas a elevar a eficiência produtiva, fez com que parcela significativa dos serviços utilizados pelas empresas passasse a ser terceirizada. A repartição implícita na reforma tributária efetuada no governo Castello Branco perdeu o sentido totalmente: os municípios avançaram em uma base tributária dos estados.
Adicionalmente, inúmeras alterações tecnológicas eliminaram a fronteira entre bens e serviços. É cada vez mais comum o aluguel de bens. Vale para carros, mas vale para filmes em um serviço de streaming. Uma pessoa compra o direito a ver um filme, bem ou serviço? Questões como essa aparecerão cada vez com mais frequência. O consumo de bens tende a desaparecer. Se não fizermos a reforma agora teremos que fazê-la nos próximos dez anos, simplesmente porque os estados não terão receita.
A cobrança do ISS e do ICMS na origem gera inúmeros incentivos perversos, como vimos, para que estados e municípios façam guerra fiscal com os recursos de terceiros, o que gera toda sorte de má alocação do investimento e da produção.
A reforma que tramita no Congresso Nacional tem por objetivo atacar essas disfuncionalidades de nosso sistema. Vamos, agora, entender o que está em jogo hoje, 2023.
4. A REFORMA
Por todos esses motivos, há uma proposta de emenda à Constituição em tramitação no Congresso Nacional, a PEC 45, que estabelece as bases de um modelo nacional baseado nos melhores IVAs do mundo. Serão criados dois impostos: o IVA federal, que substituirá o PIS/Cofins, e o IVA dos entes subnacionais, fruto da junção do ISS com o ICMS, que será compartilhado entre os estados e municípios.
O imposto pertencerá integralmente ao estado e ao município de destino e não ao de origem, como ocorre hoje. Além desses IVAs, haverá um imposto seletivo, regulatório, para desestimular o consumo de produtos nocivos à saúde ou ao ambiente, que substituirá o IPI.
Com o advento da nota fiscal eletrônica, tanto a apuração dos IVAs quanto a destinação da receita para o respectivo ente da federação ficarão muito facilitadas. Essa redistribuição ocorre automaticamente. Nada muito diferente de um sistema de compensação de débitos e créditos entre instituições financeiras. Isso já existe: trata-se de uma tecnologia que o Brasil domina como poucos países no mundo.
O espaço para a autonomia dos entes da federação será na determinação da alíquota básica do IVA. Haverá uma alíquota reduzida –50% da alíquota básica– para saúde e educação privadas, medicamentos e equipamentos médicos, transporte público de passageiros, atividades artísticas e a cadeia da agropecuária (insumos e produtos agropecuários e produtos da cesta básica).
Para alguns poucos setores, em que é muito difícil a cobrança do imposto pelo mecanismo de débito e crédito, a PEC cria um regime especial com definição em lei complementar. Estes setores são operações com bens imóveis, serviços financeiros, seguros, loterias e planos de saúde. Essas excepcionalidades seguem a experiência internacional.
O ganho de simplificação é imenso. Os ganhos sobre o crescimento da produtividade do país serão expressivos. Diversos trabalhos calculam ganhos de 10% a até 15% em função da melhora alocativa da produção e do investimento. Quando se adicionam os ganhos com a redução da litigiosidade e queda do custo de conformidade, os números crescem para 20%, segundo trabalho de Bráulio Borges.
5. A TRANSIÇÃO
A cobrança de qualquer imposto tem duas pontas: o contribuinte e o ente da federação que recebe o imposto. A reforma alterará a forma de apuração e pagamento dos impostos indiretos –produzindo uma enorme simplificação— bem como alterará a forma de distribuição do bolo tributário.
É necessário haver uma transição na ponta da forma de apuração e pagamento dos impostos indiretos para que os efeitos da reforma sejam diluídos e aferidos ao longo de alguns anos. A ideia é ter um período de teste em 2026 e a mudança dos tributos federais em 2027.
No caso dos estados e municípios, haveria uma transição entre 2029 e 2032, período em que as alíquotas do antigo sistema serão reduzidas ano a ano e as alíquotas do novo sistema serão elevadas. Em 2033 a mudança para o novo sistema estará completa, com a extinção do ICMS e do ISS. Durante a transição, o valor das alíquotas será calibrado para que a receita total seja neutra, mantendo a carga tributária como proporção do PIB.
Tudo de forma transparente e gradual, permitindo a adequação dos agentes.
Ao longo da transição do IVA dos estados e municípios, como as alíquotas dos impostos velhos serão gradativamente reduzidas, o valor dos benefícios fiscais do ICMS concedidos no âmbito da guerra fiscal também será reduzido. No entanto, como esses benefícios foram convalidados pela Lei Complementar 160 até 2032, há um risco razoável de que as empresas que realizaram investimentos em troca de benefícios demandem uma compensação na Justiça. Por conta disso, haverá um fundo destinado à compensação dessas empresas pela redução dos benefícios de 2029 a 2032. A partir de 2033 os incentivos não serão mais válidos e esse fundo acaba, junto com a extinção do ICMS.
É importante que fique bem claro que este fundo não ocorre em função da atual reforma. Ele é consequência da convalidação dos benefícios fiscais pela Lei Complementar 160 e da forma de funcionamento de nosso Judiciário em que tudo vira direito adquirido com muita facilidade. Este risco deveria ser tratado como um risco normal de operação de um negócio em uma economia de mercado.
A segunda transição refere-se à repartição federativa dos impostos indiretos. Como o imposto deixará de ser devido ao estado ou município de origem e passará para o destino, haverá uma realocação de receitas dos estados “produtores” para os estados “consumidores”. Por conta disso, haverá uma transição federativa. Ela durará 50 anos, segundo o substitutivo.
Por esse mecanismo os estados e municípios terão uma parcela decrescente da arrecadação distribuída conforme a participação de cada um na receita líquida atual e uma parcela crescente conforme a participação na receita líquida com os efeitos do novo IVA (tributação no destino).
Além disso, haverá um “seguro receita”, de 3% da receita do novo imposto, que é destinado aos entes com maior perda de participação no “bolo”. Esses mecanismos mitigarão muito os efeitos da reforma sobre as finanças dos estados e municípios. Considerando os efeitos positivos sobre o crescimento, praticamente todos os entes da federação são beneficiados.
Uma enorme vantagem da proposta é tratar as duas transições de forma independente. A transição na forma de apuração e pagamento do imposto será mais rápida e a transição da distribuição federativa será mais lenta.
Haverá um fundo permanente de desenvolvimento regional custeado pela União. Os estados mais pobres têm se utilizado do expediente da guerra fiscal como política de desenvolvimento. Além de muito ruim, como vimos, esse expediente perdeu sua efetividade desde que São Paulo resolveu entrar na guerra fiscal.
Os critérios de repartição do fundo de desenvolvimento regional serão determinados na forma de lei complementar. Em vez da política de desenvolvimento ocorrer por meio de distorções dos preços relativos ela ocorrerá por meio de transferência direta de recursos.
Há toda uma literatura de escolha pública e comportamento caçador de renda (rent-seeking, em inglês) que mostra que estimular uma atividade por meio de uma distorção de preços é muito menos eficiente do que fazê-lo por meio de uma transferência direta de recursos. O ganho de eficiência e de transparência compensará em muito os custos para o Tesouro.
6. REAÇÃO AOS CRÍTICOS
“É complexa.” Um primeiro argumento é que o novo regime é mais complexo do que o status quo. Como ficou claro na minha exposição, esse fato não é verdade. Os próprios autores, quando mencionam a complexidade, se referem à transição. Há um aumento pequeno de complexidade em 2026, ano de teste em que os dois sistemas vigorarão. É verdade que a grande simplificação ocorrerá em 2033, quando a transição estiver completada, mas já em 2027, com a extinção do PIS/Cofins, a vida ficará mais fácil para as empresas.
“Não sabemos qual será a alíquota e a carga tributária aumentará” Demandar que uma PEC fixe a alíquota do imposto não faz sentido. Alíquota não é tema para emenda constitucional. Por outro lado, qualquer mudança do sistema tributário encerra consigo uma incerteza. É exatamente por esse motivo que há uma transição. Para que a carga tributária seja calibrada. O tamanho total da tributação não se elevará. A calibragem garante a neutralidade tributária.
Evidentemente se o legislativo da União, ou o de um estado ou município desejar elevar ou reduzir a carga tributária, essa é uma decisão legítima. E ela pode ocorrer com o atual sistema ou com o novo. A diferença é que no novo sistema a mudança da carga, e seu impacto para os consumidores, será absolutamente transparente.
“Os estados avançam sobre a base de serviços que é dos municípios.” O texto foi claro em mostrar que ocorreu o oposto. Ao longo das últimas décadas foram os municípios que avançaram na base do ICMS em função do processo de terceirização que ocorreu nos processos produtivos.
“Os serviços perderão.” Não é verdade. Trabalho de simulação dos professores da UFMG, Edson Domingues e Débora Cardoso, empregando modelos computáveis de equilíbrio geral, documentam que todos os macrosetores ganham com a reforma e, evidentemente, a indústria ganha mais, por ser o setor mais prejudicado pelo sistema atual.
“Uma reforma incremental é muito melhor.” Em geral tendo a concordar com a crítica e preferir abordagens mais incrementais de reformas institucionais. Este não é o caso, contudo, com a reforma dos impostos indiretos. O motivo segue da lógica da ação coletiva.
A complexidade tributária não caiu do céu. Cada item que agrega complexidade ao nosso sistema atende ao interesse de algum segmento organizado da sociedade. Esse grupo irá bloquear a aprovação. No entanto, cada empresa tem uma dupla posição: por um lado ela é beneficiária de algum regime tributário especial; e, por outro lado, sofre com a complexidade, como todas. Se a reforma for sistêmica e atingir a todos, cada um sentirá uma perda pelo fim do seu regime especial, mas, por outro lado, cada um sentirá o ganho advindo da simplificação.
Talvez consigamos uma coalizão que não bloqueie a reforma. Se a reforma for incremental, os grupos afetados não sentirão os ganhos de eficiência, pois a reforma não será ampla, e certamente a bloquearão.
“A disputa pelos recursos do fundo gerará ainda mais ineficiência.” Esse argumento está errado. Como vimos, toda a literatura de escolha social e de rent-seeking indica que incentivos que distorcem preços relativos são muito mais custosos para a sociedade do que a transferência direta de recursos.
“A reforma precisa de mais tempo para debate.” Esse argumento, difuso entre alguns críticos e que surge como pano de fundo do referido artigo, não se sustenta. A primeira proposta de simplificação do complexo sistema tributário brasileiro e consequente criação do IVA foi apresentada pelo Ipea em 1987, quando da Constituinte. Quem nasceu naquele momento já viveu 36 anos e durante todo este momento verificou ao menos outras três tentativas do Poder Executivo Federal e do Congresso Nacional instituírem o IVA (em 2001-02, em 2007 e em 2019). A própria PEC 45, que serviu de base para o substitutivo atual, está em debate no país há cinco anos, e foi aprovada na CCJ em 2020.
CONCLUSÃO
A estrutura dos impostos indiretos vigente no Brasil foi instituída nos anos 1960. Como vimos, o desenho original, que estabelecia uma base de bens e outra de serviços, já era defasado à época. As mudanças tecnológicas agravaram em muito essa distorção. Nessas últimas pouco mais de cinco décadas a inclusão de “puxadinhos” e a concessão indiscriminada de benefícios fiscais tornou o sistema brasileiro o mais complexo e com mais distorções de que se tem notícia. A reforma é bem-vinda e reduzirá muito o custo de fazer negócio no Brasil. É certamente a reforma com maior poder de elevar no médio prazo a taxa de crescimento da produtividade do trabalho.
Evidentemente, uma reforma dessa envergadura gera muitas incertezas, mas a realidade é que os benefícios da reforma certamente superarão largamente eventuais custos. No caso das empresas, o ganho com a simplificação, o aumento da eficiência e a eliminação de distorções competitivas mais que compensa eventuais perdas de regimes favorecidos, como mostram todos os estudos disponíveis.
A reforma tributária é a reforma que isoladamente tem o maior poder de elevar a taxa de crescimento da produtividade do trabalho em um horizonte de uns 15 anos. Já passou do tempo de aprovarmos a reforma.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2023/07/resposta-aos-criticos-da-reforma-tributaria.shtml
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