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Mentiras realizáveis

O Porto Digital é resultado de uma bem-sucedida junção da academia com os setores privado e público de Pernambuco

Valor

Recife é hoje a capital brasileira que mais forma profissionais de tecnologia por 100 mil habitantes. Em 2022 foram 408 contra 343 na segunda colocada, Florianópolis, ou 253 em São Paulo. O que é hoje realidade poderia ter sido o que Silvio Meira, então professor de ciência da computação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPe), chamava de “mentiras realizáveis”. Era assim que ele se referia às suas promessas quando, na década de 90, dizia resolver qualquer problema por meio da tecnologia. De fato, ele solucionou vários. Dentre eles, o êxodo de talentos que fez o Recife assistir à emigração, em 1993, de 75% dos seus doutores. Eram jovens de áreas como engenharia, matemática ou ciência da computação, que se mudavam para o Sul ou para fora do país em busca de oportunidades.

Visto aqui do Sudeste, esse era um movimento que ocorria também no campo da economia. Àquela época, EPGE (Escola de Pós-graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas) e PUC-Rio, além da Faculdade de Economia da USP, disputavam o posto de melhor mestrado em economia no país. Economistas formados em todo o Brasil prestavam o exame da ANPEC (Associação Nacional dos Centros de Pós-graduação em Economia) movidos pela aspiração de conquistar um título de pós-graduação por uma dessas instituições.

Na EPGE, onde me formei mestre e que atraía candidatos de todas as regiões do país, era do Nordeste que vinha a maior parte dos aprovados. E com destaque para Pernambuco. O mesmo valia para o IMPA, Instituto de Matemática Pura e Aplicada, centro de excelência de formação e pesquisa que, também no Rio, via suas salas na Gávea serem ocupadas por excelentes engenheiros e matemáticos nordestinos, em particular pernambucanos.

Terminados seus cursos de mestrado, emendavam o doutorado ou se colocavam no mercado de trabalho – privado ou público – no Rio ou em São Paulo. E dos que voltavam para Pernambuco, boa parte logo buscou outro caminho.

Esse foi o pano de fundo para que, em 1997, Meira liderasse a criação do C.E.S.A.R (Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife), instituição ligada à UFPe. Em atuação desde então e reconhecido como centro referência em inovação e formação, o C.E.S.A.R. foi a semente que deu origem ao Porto Digital do Recife.

O Porto Digital é resultado de uma bem-sucedida junção da academia com os setores privado e público de Pernambuco. Fruto da indignação com o êxodo de tantos talentos, do inconformismo com a degradação do centro histórico do Recife e de uma visão de futuro que vislumbrava o uso da tecnologia como a ferramenta de solução para problemas difíceis, ele também é a maior e melhor das mentiras realizáveis de Meira, há 20 anos presidente do Conselho de Administração da Organização Social responsável por gerir o Porto Digital.

Afinal, Recife viveu uma história de prosperidade que se perdia no tempo. Sede da Bolsa de Valores de Pernambuco e Paraíba e origem de 5 bancos comerciais, o passado pujante de séculos anteriores ficava cada vez mais para trás. E ali, no início dos anos 90, essa distância parecia dobrar com a massiva migração de talentos para os outros Estados do Brasil. Todos perdiam com isso e era passada a hora de reverter esse quadro.

Criado por Lei Estadual no ano 2000, o Porto Digital contou com um aporte inicial de R$ 33 milhões do governo, além de um investimento em infraestrutura equivalente a R$ 1 milhão por parte de empresas de telecomunicações e outros R$ 10 milhões de empresas privadas. Desde 2006, as empresas que se estabeleçam por lá e atendam aos requisitos da lei municipal 17.244, usufruem de redução do ISS de 5% para 2%, dando força aos dois pilares centrais que sustentaram sua criação: a retenção de talentos e a revitalização do centro histórico da cidade do Recife.

Atualmente, contabiliza Pierre Lucena, presidente do Porto Digital, são mais de 138 mil metros quadrados de imóveis históricos restaurados e que abrigam empresas de tecnologia globais como a Accenture, que tem cerca de 3.000 profissionais trabalhando em armazéns recuperados do porto do Recife. A B3 concluiu recentemente a aquisição da Neurotech, primeiro unicórnio gestado no Porto Digital, e assim também se estabelece fisicamente ali e adiciona uma nova e relevante força propulsora do ecossistema.

Além disso, centenas de startups se beneficiam desse ambiente de inovação, criando um ciclo virtuoso que se desdobra em maior demanda por cursos de tecnologia, criação de escolas técnicas públicas e privadas e programas de formação para jovens das comunidades locais.

Hoje são 365 empresas que faturam cerca de R$ 4,75 bilhões e empregam mais de 17 mil pessoas. Um forte motor de oportunidades e de desenvolvimento econômico e social em uma região antes degradada.

Atuando nos eixos de software e serviços de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) e Economia Criativa (EC), o Porto Digital chega à maioridade consolidando os números de sucesso, mas também cristalizando seu principal ativo, que é o estabelecimento de um amplo ecossistema de inovação e de tecnologia. Para além da exuberância da vista infinita do Oceano Atlântico (formado, claro, pela junção das águas dos rios Capibaribe e Beberibe), é a riqueza do ecossistema criado, fomentado e desenvolvido ali que faz do Porto Digital esse exemplo de política pública e gestão privada que deu certo.

Como em tantos outros exemplos de políticas públicas locais que deram certo, o desafio é sempre o de escalar um modelo que se provou de sucesso. É garantir que o impacto gerado na iniciativa original seja replicado em outros locais de forma a intensificar o ciclo virtuoso, que permita que os benefícios de ações transformadoras sejam alavancadas. Atualmente, inspiradas pelo Porto Digital do Recife, há iniciativas nessa direção em outras capitais do Brasil. Silvio Meira as lidera em conjunto com o setor privado e a sociedade civil com o mesmo entusiasmo de 23 anos atrás. Mas agora, mais do que mentiras realizáveis, conta a favor um caso de muito sucesso.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/mentiras-realizaveis.ghtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Ana Carla Abrão Costa