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Primeira-infância e educação

Para salvar gerações de crianças da pobreza e informalidade é preciso investir pesadamente no desenvolvimento infantil

Valor

Os resultados da última avaliação internacional de aprendizado de crianças (PIRLS- Estudo Internacional de Progresso em Leitura) acenderam mais um sinal de alerta para a educação brasileira. As crianças brasileiras tiveram um desempenho bastante ruim na avaliação, o que significa que muitas delas terão dificuldades para concluir o ensino médio e chegarão ao mercado de trabalho sem a preparação necessária. O que precisamos fazer para melhorar a educação do país e salvar gerações de jovens nascidos em famílias mais pobres?

A objetivo do exame PIRLS é avaliar se as crianças do quarto ano do ensino fundamental têm as habilidades necessárias para compreender um texto completo e se estão prontas para aprender as demais disciplinas. O exame mostrou que uma grande parcela das nossas crianças (38%) está muito longe de alcançar estas habilidades, tendo ficado abaixo do básico. A maioria delas (49%) ficou no nível básico ou intermediário e somente 13% alcançou o nível elevado ou avançado.

Assim, não surpreende que muitas crianças tenham dificuldade para aprender as matérias do segundo ciclo do fundamental, acabem repetindo de ano em algum momento, e saiam da escola ao chegarem mais velhas no ensino médio. Além disto, mesmo as que concluem o ensino médio geralmente não têm as habilidades necessárias para terem bom desempenho no mercado de trabalho, para ganharem independência financeira e romperem o ciclo intergeracional da pobreza.

Para salvar gerações de crianças da pobreza e informalidade é preciso investir muito no desenvolvimento infantil

Para agravar a situação, os empregos que requerem baixa qualificação, como caixa de supermercado ou atendentes em “call centers” estão sendo paulatinamente substituídos por máquinas. Assim, a redução de engajamento dos jovens no mercado de trabalho que estamos verificando desde o início da década passada reflete a crescente dificuldade que eles têm para encontrar um emprego decente, mesmo aqueles que concluíram o ensino médio. A alternativa disponível atualmente para estes jovens é dirigir carros e bicicletas para aplicativos. Mas, no futuro, mesmo estas tarefas serão automatizadas.

Como podemos fazer para que nossas crianças consigam romper este ciclo de pobreza? As evidências científicas mostram o caminho a seguir, mas para isso precisaremos reorganizar nosso sistema de bem-estar social. Programas multisetoriais intensivos na primeira infância têm muitos efeitos no longo prazo. Dois programas extensivamente analisados por James Heckman, um dos economistas mais influentes do mundo, são o “Perry Preschool” e o “ABC/Care”. Esses programas apresentam taxas de retorno de até 13% ao ano, que acumulam ao longo do tempo, produzindo um benefício até 6 vezes o seu custo inicial. Mas, o que estes programas têm de tão especial?

O “ABC/CARE” foi um programa que atuava com crianças negras de famílias vulneráveis desde o nascimento até os cinco anos de idade. Seu currículo envolvia nutrição, acesso à saúde e aprendizado, com o objetivo de dotar as crianças de habilidades cognitivas, socioemocionais e saúde para o seu desenvolvimento futuro. Sua equipe incluía educadores, especialistas em desenvolvimento infantil e enfermeiras. Sempre que a equipe detectava algum problema sério com as crianças, elas eram encaminhadas para médicos especialistas.

O retorno econômico do programa “ABC/Care” foi maior do que o do “Perry-Preschool” porque este começou apenas aos 4 anos de idade, tarde demais para impactar as habilidades cognitivas das crianças. As desigualdades de oportunidades começam a se ampliar logo após o nascimento. Mesmo assim, o programa Perry teve impacto nas habilidades socioemocionais, diminuindo o envolvimento dos jovens com atividades criminosas. E um artigo recente de Heckman mostrou que ele impactou inclusive os filhos das crianças que participaram do estudo original.

Que lições podemos aprender com estes programas? A principal é que uma das únicas maneiras realmente efetivas de salvar gerações de crianças brasileiras da pobreza, informalidade e criminalidade é investir pesadamente no seu desenvolvimento infantil. Mas, para isso, é necessário que este investimento seja multisetorial, envolvendo saúde física e mental, habilidades cognitivas e socioemocionais. Assim, as políticas têm que englobar creches de qualidade, visitação domiciliar focada em desenvolvimento infantil, estratégia saúde da família, atenção básica e transferências de renda para eliminar a pobreza.

Estas políticas já existem no Brasil, mas são implementados por ministérios diferentes e não conversam entre si. As creches estão sob responsabilidade do Ministério da Educação, os programas Criança Feliz e Bolsa-Familia são do ministério de assistência social, enquanto a saúde física e mental das crianças está à cargo do Ministério da Saúde. E não há uma identificação única de cada criança que nos permita saber quais delas participam de quais programas.

Programas como o “Perry” e o “ABC/Care” são pequenos e caros. Mas, nós já gastamos muito com cada um dos nossos programas sociais separadamente. Agora, temos que combinar estes programas de maneira mais efetiva, para que cada criança pobre brasileira receba todos eles simultaneamente. Para isto, temos que usar a nova carteira de identidade nacional (ou CPF) para identificar as crianças que participam de mais de um programa e combinar a intensidade ótima de cada política de acordo com o perfil de cada criança.

Assim, quando chegarem na escola, as crianças estarão prontas para aprender a ler textos, interpretá-los e adquirir a base necessária para aprender as disciplinas subsequentes. Mas, depois, para isto realmente ocorra será necessário ter professores capacitados e currículos direcionados para a leitura de textos complexos no início do ensino fundamental. Utopia?

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Sobre o autor

Naercio Menezes Filho