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Carona

Folha

Julho foi o mês mais quente já registrado no mundo. Uma série de outros recordes ligados ao clima, como o menor nível de cobertura de gelo já registrado nesta época do ano na Antártida ou a maior temperatura na superfície da água no Atlântico Norte, parecem confirmar as previsões preocupantes da comunidade científica internacional e reduzem quase à insignificância o que resta do discurso negacionista em relação ao aquecimento global.

Também em julho, o resultado de uma eleição isolada na circunscrição eleitoral de Uxbridge e South Ruislip, na Grande Londres, surge como possível sintoma de um dos mais formidáveis obstáculos ao enfrentamento do problema: o “free ride”, expressão cuja tradução literal seria “carona grátis”, mas cujo real sentido é aquele que todos nós conhecemos no exemplo daquele colega (eventualmente nós mesmos) que não participava do esforço do trabalho de grupo, mas recebia a mesma nota que os outros ao final.

Explico. Com a renúncia de Boris Johnson à sua cadeira de deputado pelo Partido Conservador, representando Uxbridge e South Ruislip, novas eleições foram convocadas. Uma vitória do Partido Trabalhista era amplamente esperada —como, aliás, ocorreu nos dois outros distritos que tiveram eleições na mesma data—, mas os conservadores mantiveram o posto por uma margem estreita. A explicação para a derrota dos trabalhistas, na opinião de praticamente todos os analistas, tem quatro letras: Ulez.

Ulez é a sigla em inglês para “zona de emissões ultrabaixas”. A legislação estabelece que, nessas zonas, veículos que não se adequem a um certo nível máximo de emissão de dióxido de carbono estão sujeitos ao pagamento de uma taxa de £ 12,5 por dia (cerca de R$ 80). Essa lei aplica-se desde abril de 2019 à área central de Londres e já foi consideravelmente expandida em outubro de 2021, para uma área que corresponderia, na cidade de São Paulo, à região compreendida entre as marginais dos rios Pinheiros e Tietê.

Está anunciada para o dia 29, pelo prefeito trabalhista da cidade, a expansão da zona para a Grande Londres, inclusive Uxbridge e South Ruislip. Estima-se que a norma, que afeta principalmente veículos produzidos antes de 2006, atinja 10% a 15% da frota da região. É contra esse pano de fundo que a derrota dos trabalhistas deve ser entendida.

O primeiro-ministro conservador, Rishi Sunak, foi rápido em captar a mensagem das urnas; poucos dias após o pleito, anunciou a concessão de mais de cem novas licenças para exploração de petróleo no mar do Norte. Em que pesem as declarações oficiais no sentido contrário, não há como deixar de ver na medida um grave enfraquecimento do compromisso —conhecido como Net Zero— de zerar as emissões de carbono até 2050.

Onde entra o “free ride”? Na lógica subjacente desses eleitores e seus líderes segundo a qual, sendo responsável por apenas 1% das emissões globais, o Reino Unido pode relaxar seus esforços e deixar aos maiores emissores o ônus de liderar a marcha em direção ao Net Zero.

Apesar de ser um problema global, discutido em foros internacionais como as conferências do clima, o combate ao aquecimento é implementado segundo interesses regionais, como no caso de Uxbridge. Para superar essa dificuldade, seria necessário um amplo acordo global que efetivamente comprometesse os países com suas metas de redução de emissões através de mecanismos econômicos, como a fixação de um preço global para o carbono e o estabelecimento de sanções para o descumprimento.

As evidências acumuladas nos mais de 30 anos de negociações, no entanto, indicam não ser essa uma hipótese realista. Não parece haver como levar governantes sujeitos a eleições a cada quatro anos a impor ônus a seus eleitores, por décadas.

Excluída a alternativa do acordo global, que esperanças restam? O êxito no combate ao aquecimento dependerá do exemplo dos países mais conscientes, que, conforme obtenham êxito em suas políticas, poderão gerar um duplo efeito positivo: persuasão moral sobre as nações recalcitrantes e redução do custo das “tecnologias verdes” à medida que essas ganham maior escala, facilitando sua adoção. Por isso causa tanta preocupação o retrocesso do Reino Unido, que até então contava entre as “nações conscientes”.

Uma leitura dos planos de Net Zero da UE (União Europeia), do Japão, da Coreia do Sul e da Austrália demonstra haver países seriamente comprometidos com suas metas, que procuram influenciar o resto do mundo pelos meios possíveis sem, no entanto, condicionar seu compromisso a que outros também cumpram os seus.

O caso da UE é emblemático. Criou barreiras financeiras e administrativas para garantir que os produtos oferecidos nos seus mercados obedeçam às mesmas normas impostas a seus produtores internos, ao mesmo tempo que implementa medidas internas rigorosas como, por exemplo, a proibição de voos domésticos na França entre cidades servidas por trens rápidos.

Enquanto isso, espera-se no Brasil a divulgação de um amplo Plano de Transição Ecológica, envolvendo a participação de sete ministérios e investimentos na casa da centena de bilhões de dólares.

Após a grande frustração que foi a ausência de metas concretas para o fim do desmatamento na Cúpula da Amazônia, ocorrida no início deste mês em Belém, esse anúncio seria um excelente passo no sentido de alinhar o Brasil —que ainda não publicou seu plano de carbono neutro e era até recentemente considerado um pária na questão ambiental— às nações mais comprometidas. É sempre bom lembrar que estaríamos atendendo aos nossos próprios interesses, uma vez que somos um dos países que mais têm a ganhar no ciclo de baixo carbono.

Melhor ainda será se, enquanto o Reino Unido concede novas licenças, o Brasil demonstrar determinação política para seguir a orientação dos órgãos ambientais em relação à exploração de petróleo na foz do rio Amazonas.

A hora é grave. A contenção do desastre climático depende do poder de convencimento que nações conscientes possam exercer através do exemplo. Que o Brasil possa contar entre os que convencem, não entre os que necessitam ser convencidos.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2023/08/carona.shtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Candido Bracher