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Opção pelo fogo

Folha

Entre os filmes inesquecíveis da minha adolescência, destaca-se “Grand Prix”. Nele, há um diálogo cujo impacto só fez crescer nas diversas vezes em que o revi. Ocorre quando o piloto Jean-Pierre Sarti, interpretado pelo ator Yves Montand, diz à sua companheira que, quando vê um acidente na pista, acelera fundo, pois sabe que todos os demais pilotos estão levantando o pé.

Mais do que o espírito competitivo, impressiona na frase a tentativa de repressão do medo e do sofrimento diante da tragédia que atinge um semelhante.

Do mesmo modo, sempre me chama a atenção, quando há acidentes na estrada, o enorme engarrafamento que persiste horas após o fato, quando os carros acidentados já não obstruem a pista. Os motoristas reduzem muito a velocidade para observar o acidente; nem mesmo os que estão impacientes para seguir viagem deixam de olhar atentamente.

Nessas situações, sempre sinto certa culpa, não pelo que se poderia chamar de “curiosidade mórbida”, que contrasta com a empatia com as vítimas, mas pela sensação de alívio, que parece dizer: “Poderia ser comigo, mas não foi”.

Talvez para combater o risco de ser insensível à dor alheia, antes de ir ao cinema para ver “Oppenheimer”, segui a sugestão do crítico Amir Labaki e assisti pelo streaming ao filme “Clarão/Chuva Negra: A Destruição de Hiroshima e Nagasaki”, de Steven Okazaki. O documentário, com cenas de época e entrevistas de sobreviventes japoneses e mesmo militares americanos, expõe de forma profunda e tocante a dor que o filme hollywoodiano omite.

O excelente livro “Oppenheimer: O Triunfo e a Tragédia do Prometeu Americano”, no qual o filme campeão de bilheteria se baseia, ainda me ensinaria algo a respeito dos limites da minha capacidade de empatia com o sofrimento alheio, que me é penoso compartilhar. Em uma passagem, após o êxito da explosão atômica, Oppenheimer diz só lamentar que não tenha sido possível concluir o projeto da bomba a tempo de lançá-la sobre a Alemanha de Hitler.

É claro que entendo a lógica do raciocínio, especialmente considerando que Oppenheimer era judeu, mas confesso que senti um frio na espinha. Não tenho nacionalidade, nem ancestrais alemães, mas nasci na Alemanha de pais brasileiros. Antes de vir definitivamente para o Brasil, vivi meus primeiros dois anos de vida em Friburgo e Heidelberg, cidades onde tenho amigos que voltei a visitar várias vezes.

A ideia de que a bomba pudesse ser lançada sobre essas cidades chocou-me ainda mais do que as imagens de Hiroshima e Nagasaki, lembrando-me de forma crua que, ao sentirmos empatia, estabelecemos uma hierarquia de proximidade entre os nossos semelhantes. Alguns são mais semelhantes que outros: “Mateus, primeiro os teus”.

Mas o evento que deu origem à trilha de pensamentos desse texto ocorreu há poucos dias na Grécia e chocou-me a ponto de se tornar uma ideia recorrente, inclusive em sonhos. Dei-me conta disso no dia em que despertei pensando no título de um livro de que gostei muito: “Outras vidas que não a minha”, de Emmanuel Carrère. No livro, o autor francês reflete com grande sensibilidade —a partir de dois casos reais envolvendo pessoas próximas— sobre acidentes, doença, morte, pobreza e principalmente sobre o amor que pode envolver essas situações extremas.

No episódio grego, após os graves incêndios que atingiram principalmente a ilha de Rodes em junho, o fogo voltou a causar grande destruição no final de agosto e início de setembro em florestas situadas no nordeste do país, próximas à fronteira com a Turquia.

Os bombeiros encontraram 19 corpos carbonizados na floresta, mas nos dias que se seguiram não houve nenhum registro de pessoas desaparecidas na região. Hoje já não pairam dúvidas de que os mortos eram refugiados, chegados à Grécia através da Turquia, que se esconderam na floresta após cruzar a fronteira.

Imagino-os ao se aperceberem do incêndio, relutando em fugir para a cidade próxima de Alexandroupolis, por medo de serem devolvidos à Turquia e deportados para seus países de origem no norte da África. Esses momentos de hesitação custaram-lhes a vida. Alcançados pelas duas tragédias globais contemporâneas —a dos refugiados e a do aquecimento global— e confrontados com a opção entre o risco do fogo e o do retorno às agruras das quais buscavam fugir, escolheram o fogo.

Diferentemente do livro de Carrère, onde as vítimas eram próximas, foi justamente a percepção da enorme distância que há entre as condições e oportunidades que eu tive e a dos refugiados na floresta de Evron que me fez despertar pensando na frase “outras vidas que não a minha”. Neste caso, não foi apenas um sonho ruim.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2023/09/opcao-pelo-fogo.shtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Candido Bracher